“Um extrato da cultura de um povo”, isso é o teatro para Hilton Cobra, ator e gestor cultural, fundador da Cia Negra Teatro dos Comuns. E foi esta visão que ele compartilhou na mesa de abertura do 1º Fórum Negro das Artes Cênicas (FNAC), enquanto criticava o pequeno espaço da cultura negra nas artes cênicas.
O Fórum, promovido pela Escola de Teatro e pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, com apoio das Pró-Reitorias de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil, e de Extensão, além da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado, motivou uma série de debates sobre a inserção de referenciais da cultura negra no ensino, na pesquisa e na formação em artes cênicas.
Hilton Cobra, o primeiro palestrante, considerou que ser artista negro exige um comprometimento para enfrentar a invisibilidade social que faz com que negros e negras sejam vistos apenas como números frios, estatísticas sociais, com histórias de vida que não comovem. “A arte é uma bandeira de luta. Temos que gritar para fazer valer os nossos direitos. Essa iniciativa é um imperativo histórico e cultural”, disse.
O evento de abertura também contou com as presenças dos professores Adalberto Santos (Humanidades, Artes e Ciências – IHAC/UFBA) e Inaicyra Falcão (Unicamp), com a mediação da diretora teatral Fernanda Júlia, fundadora do Núcleo Afro brasileiro de Teatro de Alagoinhas. A inserção de referenciais da cultura negra no ensino, pesquisa e formação em artes cênicas motivou uma série de debates durante o Fórum, promovido pela Escola de Teatro da UFBA, entre os dias 13 e 17 de fevereiro.
Hilton Cobra ressaltou a importância de dar sequência ao trabalho de Abdias Nascimento – que fundou o Teatro Experimental Negro, em 1944, e atuou por mais de 70 anos na defesa dos direitos civis e humanos das populações negras. Em 2001, Cobra fundou da Companhia dos Comuns, formada por artistas e técnicos negros e voltada para o desenvolvimento de uma dramaturgia da cultura negra.
“Faço um teatro negro, uma dramaturgia que contempla referenciais do povo negro e envolve profissionais negros. Falo da vida de pessoas negras. Do povo que sai de casa todos os dias com receio de sofrer uma abordagem policial motivada por preconceito racial. Estou falando da vida dessas pessoas que são discriminadas todos os dias quando saem de casa”, afirmou.
O ator elogiou os movimentos que se articulam dentro da universidade para combater o racismo e manter acessa a possibilidade de transgredir e romper com barreiras e preconceitos. Ele ainda falou de sua experiência pessoal no processo seletivo para a Escola de Teatro, que na ocasião demandava o estudo de clássicos do teatro com tradição europeia, porém sem referências a pensadores negros que permitissem abordar suas estéticas, tradições e histórias de vida.
“Precisamos da contribuição da academia” disse o ator, que ressaltou a urgência em dar voz ao povo negro nos diversos espaços da sociedade – inclusive nas artes cênicas. “Somos 120 milhões de pretos e pretas nesse país e isso tem que ser traduzido em poder”.
Cobra considera que os avanços obtidos nos últimos anos, com a Política de Cotas e Ações Afirmativas na universidade, sofrem ameaça com o projeto político que assumiu o poder no país recentemente. “Não existe democracia racial no Brasil, que é um país absolutamente racista”, alertou, sugerindo que, a partir dessa constatação, deve-se pensar a universidade e seus currículos.
“O que define o teatro negro? Só descobriremos pensando e fazendo (teatro)”, provocou o ator.
A professora Inaicyra Falcão, que coordena o grupo de pesquisa interinstitucional “Corpo e Ancestralidade”, relembrou os seus primeiros referenciais da cultura afro-brasileira, quando, ainda criança, ela frequentava o Terreiro Ilé Axé Opó Afonjá, então comandado pela líder espiritual Mãe Senhora, sua avó. “Ao falar dos orixás, está se falando do homem e da sua ancestralidade”, disse sobre o candomblé.
Na Nigéria, a professora desenvolveu o seu mestrado, na Universidade de Ibadan, com foco na cultura iorubá, na religiosidade africana e na herança afro-brasileira. Após mais de 20 anos dedicados ao ensino na Universidade de Campinas, com pesquisas e apresentações artísticas realizadas no exterior, a professora reclama do pouco interesse que existe na academia em relação aos temas ligados à cultura afro.
“É preciso respeitar a pluralidade cultural do país e a diversidade que somos nós”, disse Inaicyra, que sugeriu a revisão dos currículos e que os concursos públicos nas universidades sejam pensados de modo a incentivar o desenvolvimento de linhas de pesquisas que comtemplem os elementos da cultura negra. “O estudo é a arma que todos devem se utilizar nesse sistema”, concluiu a professora.
Ensino e Cultura Negra
Durante o debate que marcou a abertura do 1º Fórum Negro das Artes Cênicas, Adalberto Silva Santos, vice-coordenador do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA, falou sobre o papel da universidade enquanto espaço de formação que deve contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e, portanto, melhor, contemplando toda a sua pluralidade cultural.
O professor considera ser preciso investir em um pensamento descolonizado que abrirá vias para a desconstrução de uma história de dominação, rompendo com referenciais rígidos no ensino acadêmico, em respeito à diversidade. Por isso, propõe um currículo pautado por referenciais múltiplos, que considerem as diversas matrizes culturais formadoras da nação brasileira como a indígena e a africana.
Adalberto Santos ressaltou que negros e negras deixaram um lastro cultural que atravessou séculos, legando muitos conhecimentos e valores. E apontou a necessidade de transversalizar esses assuntos no currículo e não apenas inseri-los como componentes curriculares de maneira isolada. A temática negra, no seu entendimento, não pode ser tratada apenas como um conteúdo isolado, mas sim abordada de maneira transversal no currículo, ampliando a visibilidade do povo negro.
“O patrimônio cultural negro é algo que temos para oferecer ao mundo. Nossa tarefa é enegrecer o mundo”, conclamou o professor que vê o Brasil como um país preconceituoso, classista, sexista e racista. Para ele, isso se expressa cotidianamente em processos seletivos, por exemplo. O professor também chamou atenção para o extermínio da juventude negra com processos de violência que se avolumam cotidianamente.
“É necessário promover uma mudança em nossa concepção de arte. Transformar teorias em práticas e modificar o sistema de valores que circula na sociedade brasileira”, observou Adalberto.
A abertura do 1º Fórum Negro das Artes Cênicas contou com ainda as presenças de Cláudio Cajaíba, diretor da Escola de Teatro, Fábio Dal Gallo, coordenador do programa de pós-graduação, e de muitos professores da Escola de Teatro da UFBA, entre os quais Hebe Alves, Luiz Marfuz e Meran Vargens. O evento também reuniu um grande público formado por estudantes, pesquisadores, militantes e representantes de organizações sociais que lotaram o auditório da unidade de ensino.
O FNAC aconteceu entre os dias 13 e 17 de fevereiro, na Escola de Teatro da UFBA, com a coordenação da professora Evani Tavares Lima (UFSB) e produção da atriz e licencianda Fabrícia Dias. A programação do evento incluiu apresentações artísticas, leitura dramática, ateliês temáticos, feira empreendedora, lançamento de livros e encontro de pesquisadores sobre a temática negra.
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