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Residência em arquitetura oferece assistência técnica a comunidades

Residência AU+E existe desde 2013

Residência médica todo mundo sabe que é aquele período de especialização supervisionada por profissionais mais experientes, algo quase obrigatório para os recém-formados em medicina. E residência que não seja em medicina, será que existe?

Existe: criada há quatro anos, a Residência Profissional em Arquitetura, Urbanismo e Engenharia (Residência AU+E) da UFBA, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU), vem atraindo profissionais recém-formados nessas áreas e em áreas afins para um período de especialização em uma atividade com potencial de mercado, à qual porém os jovens costumam dar pouca atenção, seja por falta de estímulo, seja por falta de ‘glamour’: a prestação de serviços de assistência técnica, habitação e direito à cidade a comunidades de baixa renda dos centros urbanos ou de zonas rurais.

Existe e é um pioneiro e bem-sucedido projeto da UFBA, idealizado pela professora Angela Gordilho, da Faculdade de Arquitetura, em parceria com a Escola Politécnica. O curso oficialmente se chama “Especialização em Assistência Técnica, Habitação e Direito à Cidade” – “residência”, portanto, é uma forma simpática de nome fantasia. O objetivo fundamental do projeto foi pôr em prática uma lei de 2008, que prevê “o direito à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social” a famílias com renda mensal de até três salários mínimos. A lei é bonita, mas, para que saia do papel, é preciso que haja investimentos financeiros e profissionais capacitados e sobretudo interessados em prestar esse serviço.

A ideia da professora Ângela, portanto, foi convocar profissionais recém-formados a prestar serviço a quem de fato precisa, aprendendo com as comunidades sob a supervisão de professores do corpo docente da universidade e colaboradores externos. Assim surgiu a Residência AU+E, que desde 2013 tem acolhido a cada dois anos cerca de 20 novos profissionais, a maioria recém-formados das universidades baianas, mas também gente de outras partes do Brasil – como Paraíba, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Minas Gerais – e até de outros países, como Itália e Alemanha. Na tutela desse batalhão estão 55 docentes, a maior parte deles da UFBA (Arquitetura e Urbanismo, Escola Politécnica e Escola de Administração) e também professores de outras instituições de ensino, além de oito tutores, nas universidades federais da Paraíba e de Pelotas e na Universidade de Brasília.

As duas primeiras turmas já produziram 43 projetos, atendendo às demandas de 14 comunidades diferentes – 11 na região metropolitana de Salvador, uma no município de Ruy Barbosa (a 320 km da capital baiana) e duas em João Pessoa (PB), sob a tutela de professores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – instituição parceira da RAU+E, que neste ano se prepara para lançar seu próprio curso de Residência, inspirado na experiência baiana. O curso tem duração total de 14 a 16 meses, sendo um período inicial de 4 meses de aulas teóricas e debates, e o restante do tempo destinado ao contato direto com as comunidades e à elaboração supervisionada dos projetos. As inscrições para o processo seletivo para a próxima turma estarão abertas entre 1 e 30 de julho – todas as instruções já estão disponíveis no site www.residencia-aue.ufba.br.

De baixo para cima

Mais do que a quantidade, o modo como os projetos são desenvolvidos chama atenção. “O objetivo final são cidades melhores. [Então] é preciso que os profissionais conheçam a cidade e contribuam para a melhoria dela a partir da percepção e das demandas das comunidades que vivem nela”, explica a vide-coordenadora Elisamara Emiliano, professora da Faculdade de Arquitetura.

Ela explica que esse tipo de olhar vai justamente de encontro ao modo como ainda hoje se costuma fazer políticas públicas de habitação no Brasil: “de cima para baixo”, tomando como ponto de partida os interesses dos gestores, e não os da população. “Se a comunidade precisa de uma creche, e o gestor vai lá e faz uma praça, sem ouvir a demanda, é muito provável que aquela praça fique sem uso, ou seja quebrada, sinais de que a comunidade está rejeitando algo de que ela não tem real necessidade”, explica.

O objetivo, portanto, é empoderar as comunidades, que, de posse dos projetos – os quais, ao final do período da Residência, são doados às respectivas lideranças comunitárias – passam a ter um elemento a mais no diálogo com o poder público. “É muito comum ouvir dos gestores que o dinheiro para investir existe, e que o que falta é projeto. Nosso objetivo é instrumentalizar as comunidades, para que elas digam ‘quero um parque/uma praça/um ponto de ônibus aqui'”, explica a vice-coordenadora.

A professora Elisamara vê ainda como ganho na carreira dos residentes a expansão das possibilidades de atuação profissional. Embora não tenha o mesmo ‘glamour’ dos grandes escritórios de arquitetura que constroem grandes lançamentos imobiliários e shoppings centers gigantes, a área de projetos de assistência técnica para comunidades de baixa renda é, segundo ela, “um mercado imenso”, já que recebe constantes investimentos do Estado e de instituições financeiras, para-estatais e não-governamentais, como Unicef, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e organizações sociais nacionais e internacionais.

Mão na massa

Entre os projetos de maior destaque nos últimos anos estão os estudos preliminares para a criação do Parque Teodoro Sampaio, na região da Mata Escura e a assistência técnica prestada aos moradores do Quilombo Rio dos Macacos, em Simões Filho.

Em maio, um time de oito residentes da segunda turma (2015-16) entregou à Associação de Comunidades Paroquiais de Mata Escura e Calabetão (Acopamec) os quatro volumes de um estudo preliminar para a criação do Parque Teodoro Sampaio, em uma área de aproximadamente 84 hectares margeada por cinco bairros: Mata Escura, Jardim Santo Inácio, Barreiras, Arraial do Retiro e Calabetão, nas proximidades do Acesso Norte e BR 324, onde vivem cerca de 50 mil pessoas.

Embora a área seja considerada de proteção de recursos naturais e nela esteja prevista a construção de um parque nos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano de 2008 e 2016, os residentes encontraram um ponto de partida nada encorajador para o trabalho: não havia qualquer projeto ou mesmo mapeamento mais acurado da área, que, também por conta disso, vem sendo progressivamente ocupada de maneira irregular pela população necessitada de moradia.

O cenário mapeado pelos oito residentes – Andréa Bianca Chong, Danilo Sobrinho, Débora Marques, Fernanda D’ Angelo, Joaquim Nunes, Elisete Cristina Vidotti, Gisele Paiva Leite, Patrícia Duarte Silva – foi o mais diverso possível. Dentro da área do parque estão o território tombado do terreiro de candomblé do Bate Folha, o Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama e uma crescente ocupação irregular, expandindo a já intensa ocupação urbana nos arredores, que tende a se acentuar com a presença da estação Bom Juá do Metrô próxima ao parque.

Em oito meses de trabalho de campo, o grupo foi em busca de documentos que permitissem ter noção das dimensões da área do parque; ouviu e participou de oficinas com as comunidades de moradores de cada um dos cinco bairros no entorno; coletou depoimentos sobre a história da área verde; e embrenhou-se pelas matas (acompanhado por policiais militares, pois a região é perigosa) para conhecer e demarcar trilhas e marcos de acesso à mata, que é 50% coberta por vegetação remanescente da mata atlântica. Entre as constatações, uma triste e vergonhosa obviedade brasileira: caixas de esgoto e despejo de resíduos em represas e leitos de rio, que resultaram em uma denúncia de maus tratos ao meio ambiente dos moradores ao Ministério Público, assessorada pelos residentes.

“A residência atrai os [profissionais] ‘inconformados’, que têm interesse em trabalhar com comunidades, pois nossa profissão ainda é vista como muito elitista”, afirma a residente Elisete Vidotti, 26. “Mapeamos uma área que até mesmo a população que vive próximo a ela desconhece. A área do Parque Teodoro Sampaio fica no quintal, mas as pessoas acabam frequentando parques distantes, como o de Pituaçu e o Parque da Cidade”, observa a residente Débora Marques, 28.

Em janeiro de 2016, três projetos foram entregues à Comunidade Remanescente do Quilombo Rio dos Macacos, localizada em Simões Filho, em território contíguo à área atualmente ocupada pela Base Naval de Aratu, gerida pela Marinha.

Desenvolvidos pela arquiteta Luana Figueiredo, pelo urbanista Leonardo Polli e pela geógrafa Paula Regina Cordeiro, os projetos possibilitaram à comunidade a traduzir em linguagem técnica conhecimentos ancestrais acerca do território onde vivem, aumentando as chances de levantar recursos junto a governos e órgãos de fomento para melhorar as condições de vida no local.

Fruto de um trabalho de cerca de dois anos em coautoria com os membros da comunidade, os estudos técnicos assinados pelos residentes definem diretrizes para a construção de um centro de convivência e de uma casa de produção de farinha no terreno remanescente quilombola, além de mapeamentos dos potenciais produtivos e territoriais da área, o que possibilitou documentar a demarcação do território perante negociações com a Marinha e o Ministério Público.

Fonte: EdgarDigital