Pioneirismo, excelência e dedicação se traduzem em uma mesma palavra na Faculdade de Odontologia da UFBA: sorriso. Sorriso de gente que encontra tratamento para dores faciais crônicas que fazem pensar até em suicídio. De gente que ganha uma dose vital de auto-estima ao receber próteses que lhes reconstituem parcialmente o rosto mutilado por acidentes ou cirurgias. De mães que têm a oportunidade rara de levar os filhos ao dentista desde bebezinhos. De quem descobre que pode obter laudos e radiografias que só são feitos ali, ou tem a chance de ser tratado em um dos mais destacados centros de pesquisa com laser do mundo.
A reportagem do Edgardigital acompanhou de perto, ao longo desta semana, o cotidiano de uma das mais tradicionais unidades da Universidade. Entre corredores, consultórios, jalecos e maletas de instrumentos odontológico, foi possível experimentar um pouco do clima de clínica-escola da Faculdade, lugar onde se realizam alguns serviços únicos no estado – serviços que transformam a vida de centenas de pacientes, a maior parte deles das camadas mais pobres da população, que virtualmente ficariam sem atendimento se o acesso não fosse gratuito.
“Além de um curso com nota máxima no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes do ensino uperior), temos aqui setores que prestam serviços essenciais para a sociedade, mas que muitas vezes a sociedade não conhece”, afirma o diretor Marcel Arriaga. Em comum entre as diversas ações realizadas na escola, Arriaga aponta o esforço e a doação dos docentes, que chegam a empregar recursos próprios e trabalho voluntário nos projetos e laboratórios em que atuam. Há serviços, observa o diretor, que têm que ser oferecidos para que o conhecimento acumulado em determinadas especialidades não se perca: “Tem coisas que são únicas e que, se um determinado professor deixa de oferecer, aquele conhecimento acaba.”
É o caso do tratamento a dores na articulação têmporo-mandibular – aquelas dores faciais que, nos casos mais extremos, chegam a travar a boca dos pacientes, impedindo-os de abri-la ou fechá-la – oferecido pelo Coat (Centro de Oclusão e Articulação Têmporo-Mandibular). Fundado em 1986 pelo professor José Augusto Lisboa, o centro acolhe pacientes com quadro de dor crônica, resultado de disfunções que podem levar à perda de dentes e provocar desgaste e destruição da articulação da face (osso temporal, superior, e mandíbula, inferior), incapacitando a pessoa de mastigar e falar. “Tratar dor não é uma ciência exata, porque, para o emocional, não há aparelho que meça. De zero a dez, todos os pacientes chegam dizendo que estão sentindo a dor máxima”, explica Lisboa.
Por isso, o professor Lisboa, que dirige o centro há 30 anos, lidera uma equipe multidisciplinar com outros quatro dentistas clínicos, uma psicóloga e uma fisioterapeuta – todos jovens voluntários, formandos ou recém-formados – além de uma auxiliar odontológica. O atendimento é minucioso e personalizado: “Cada caso tem uma especificidade, não dá para atender de 15 em 15 minutos. É pelo menos uma, duas horas para cada”, explica Lisboa. A equipe do Coat já foi maior, mas dificuldades operacionais e a reduzida quantidade de profissionais especializados nesse tipo de dor obrigou o centro a enxugar o time, que hoje é capaz de acompanhar, com o cuidado necessário, cerca de dez casos paralelamente. A procura, no entanto, não para de aumentar: a fila de espera atualmente tem incríveis 3.362 pessoas.
Em palestras e cursos sobre o assunto, Lisboa costuma mostrar um vídeo curto, de 8 minutos, com depoimentos de pacientes que, de tanta dor, beiraram o enlouquecimento e chegaram a pensar em suicídio antes de descobrirem o Coat – muitas vezes após já terem sido desenganados por médicos. Alguns casos se atenuam ou resolvem com a colocação de placas acrílicas que impedem a pessoa de repetir o movimento que provoca a dor; outros, com fisioterapia, acupuntura ou aplicação de laser, que tem efeito analgésico e anti-inflamatório. O caso mais recente – e anedótico – foi o de uma paciente que adiou o casamento porque “não podia nem beijar”, tamanha a dor que sentia. “Instalei na boca dela um aparelho interoclusal [placa acrílica que reorienta a mordida] e indiquei fisioterapia, para relaxar os músculos. Em um mês ela já estava bem melhor”, conta Lisboa. E o casório, felizmente, saiu.
Casos que requerem tratamento com laser são encaminhados para o Centro de Biofotônica, que consiste na clínica e no conjunto de laboratórios coordenados pelo professor Antonio Pinheiro. A clínica acolhe também pacientes com nevralgia do trigêmeo (nervo responsável por transmitir as sensações do rosto para o cérebro), paralisias faciais e sequelas de cirurgias (como perda de sensibilidade após implantes dentários ou anestesias), dificuldade de cicatrização (comum em diabéticos) e vítimas de queimaduras. É o único local na Bahia que presta esse tipo de atendimento no serviço público: só entre junho e dezembro, foram 1.832 atendimentos realizados.
Os anos de atividade na área clínica levaram o professor Pinheiro a querer saber o que acontecia em nível microscópico quando ele aplicava o laser na boca dos pacientes: “Fiz o inverso do que a maioria faz: da clínica, desviei para a pesquisa básica”, conta. Foi essa curiosidade que o levou, sem abandonar a clínica, a tornar-se um dos principais especialistas do país, e mesmo do mundo, em pesquisas envolvendo laser, com 161 artigos publicados em revistas internacionais, 3 livros e 21 capítulos publicados, além de 100 resumos expandidos e 500 apresentações de trabalhos em congressos. No Centro de Biofotônica já foram formados 38 mestres, 31 doutores e 11 especialistas, além de 52 bolsistas de iniciação científica e 8 pós-doutores.
Tamanha produção se explica em parte porque os estudos com laser extrapolam as fronteiras da odontologia: através de projetos financiados pelas agências de fomento brasileiras, o Centro de Biofotônica – que conta com lasers Raman com alcance de 532, 785 e 1064 nanômetros (bilionésimos de metro), adequados para aplicação em materiais inorgânicos, compostos químicos e material biológico, respectivamente – já realizou pesquisas para desenvolver novas técnicas de eliminação de micro-organismos e bactérias, desinfecção de poços de petróleo, detecção de câncer de próstata, reaproveitamento de água poluída e até mesmo análises de qualidade do azeite de dendê. O Centro integra a Renorbio (Rede Nordeste de Biotecnologia) e tem parcerias com universidades e instituições de pesquisa britânicas. Recentemente, através do professor Pinheiro, a UFBA tornou-se parceira da Universidade Federal de São Carlos no INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) “Basic Optics and Applied to Life Sciences”.
Devolver qualidade de vida
Gilvalino de Jesus, 35, perdeu o olho direito e um percentual da visão do esquerdo em um acidente de moto em 2012. Se não recuperou a visão, Gilvalino ao menos pôde ter de volta o aspecto original de seu rosto, graças a uma prótese de olho fabricada e implantada pela equipe da clínica de prótese bucomaxilofacial da Faculdade de Odontologia. A equipe liderada pelo professor Guilherme Meyer, integrada pelas professoras Luciana Wandeley e Andrea Lira e pelos alunos da disciplina prótese bucomaxilofacial, presta, desde 2013, um serviço essencial e único no Estado: ajudar pacientes que têm a face mutilada em acidentes e cirurgias a recuperar o aspecto do rosto e, junto com ele, parte da auto-estima perdida.
A maior parte das pessoas que procuram a clínica busca amenizar sequelas de cirurgias oncológicas, geralmente realizadas em hospitais públicos. “A preocupação não é estética: o importante é devolver qualidade de vida”, resume Meyer. E assim, “aprendendo com cada caso”, ele e sua equipe confeccionam narizes, olhos e orelhas que fazem a diferença na vida dos pacientes – são quatro a cinco casos, em média, tratados por semestre. Além das próteses faciais, também são implantadas próteses intra-orais, que fecham cavidades entre a boca e o nariz, dando ao paciente a possibilidade de voltar a falar e se alimentar. O alto custo das próteses – entre R$ 3 e R$ 4 mil numa clínica particular, estima Meyer – torna o serviço ainda mais essencial, já que, na Faculdade, o atendimento é feito através do SUS.
Apaixonado pelo trabalho, o professor Meyer conta que só aceita convites para palestras se for para falar de prótese bucomaxilofacial, “para difundir o tema e despertar o interesse de mais profissionais”. Buscando aprimorar a técnica de modelagem – atualmente feita do modo tradicional, com um molde em alginato (o mesmo material utilizado na moldagem da arcada dentária) em contato com o rosto ou a boca do paciente, seguido pela confecção de um modelo em cera e da prótese definitiva em resina –, Meyer fez doutorado em modelagem computacional no Senai/Cimatec. Atualmente, seus sonhos de consumo para a clínica são um scanner de face e uma impressora 3D, que permitirão confeccionar próteses mais precisas e de maneira menos invasiva para os pacientes. O custo dos aparelhos: modestos 18 mil reais, que o professor solicitou no último edital voltado a jovens doutores docentes da UFBA, cujo resultado sai em breve.
Levantar recursos para complementar o laboratório é um desafio que a professora Iêda Crusoé Rebello, coordenadora do Laboratório de Radiologia da Faculdade de Odontologia, conhece bem. Há cerca de três anos, ela convenceu outros dois colegas professores – Frederico Neves e Paulo Flores, titular da cadeira de Radiologia, que formou várias gerações de dentistas baianos – a abrir mão de suas remunerações por dois cursos de especialização e um de extensão em radiologia (ministrados ao longo de aproximadamente dois anos e meio) em nome de uma causa nobre: completar a reforma do laboratório, a um custo de R$ 40.617,93, complementando a verba investida pela Secretaria de Saúde do Estado.
A precisão na casa dos centavos tem um motivo: “self made woman” não apenas no sobrenome, Iêda conhece “cada parede, cada tubo, cada fio” do projeto da reforma do laboratório – que, concluído finalmente em novembro de 2015, deixou de “parecer com um banheiro” e passou a ter a cara sonhada por ela. Pós-doutora em Radiologia pela University of Louisville (EUA), Iêda traduziu nas paredes do espaço reformado a paixão pelo trabalho: para revestir o quadro de energia elétrica, escolheu uma plotagem de palavras-chave como “compromisso”, “qualidade”, “dedicação” e “amor”; para recobrir um duto feio que sobreviveu à reforma, fez questão de um revestimento delicado; e para decorar as paredes e portas do laboratório, escolheu a dedo radiografias estilizadas de pessoas e de flores. “Radiologia, para mim, é arte”, resume.
É nesse clima que funciona um dos setores mais produtivos da Faculdade: aberto de segunda a sexta-feira, o laboratório realiza 3.500 procedimentos, em média, por semestre. É o único que presta serviços de radiografia e tomografia odontológica pelo SUS. Com cinco docentes, oito alunos de iniciação científica e dez alunos de pós-graduação, a equipe do laboratório é a terceira com mais publicações de artigos científicos no país sobre radiologia odontológica, atrás apenas das gigantes USP e Unicamp.
Dentes fortes, hein, garoto!
O pequeno Abraão tem só 4 anos, mas já superou um medo do qual muita gente velha jamais se livrará: o medo da cadeira do dentista. Isso porque desde que tinha nove meses de idade, sua mãe, Jeane Grace Vasconcelos, o inscreveu como paciente da clínica materno-infantil – ou, mais graciosamente, a “clínica de bebês” – da Faculdade de Odontologia. Fruto do amadurecimento de um projeto de extensão iniciado em 1997, a clínica é o espaço-laboratório da disciplina optativa clínica materno-infantil: acolhe crianças entre 0 e 12 meses de idade, que passam a ser acompanhadas até completarem 4 anos pela equipe formada por professoras e alunas.
Coordenada pela professora Maria Goretti Brito, a equipe da clínica conta ainda com as professoras Paloma Dias e Alessandra Castro Alves. A ideia de acompanhar crianças desde bem novinhas surgiu por uma razão fundamental: “A incidência de cárie entre crianças ainda é altíssima”, afirma, taxativa, a professora Goretti. “E o acompanhamento odontológico nessa idade? Praticamente não há”, lamenta. O trabalho, portanto, é de “educação permanente” não apenas das crianças, mas sobretudo dos pais. “Quando iniciar a saúde bucal do bebê? Desde pequenininho, uma vez ao dia, com uma gaze umedecida em água fervida, na língua e nas gengivas, para retirar o excesso de leite”, recomenda.
As palestras a que assistiu na clínica fizeram a mãe de Abraão aprender muito sobre hábitos de higiene e cuidado com os dentes. Ela conta que só mandava os filhos escovarem os dentes uma vez por dia, e que não sabia usar o fio dental. “Na alimentação, eu pensava que tudo prestava, mas estava enganada. Cortei biscoito recheado, salgadinho e guaraná. Agora é só suco e fruta. Minha casa agora tem uma bela fruteira, e o armário não tem mais porcaria”, conta Jeane. Abraão nunca teve uma cárie.
A clínica de bebês é “a menina dos olhos” da professora Goretti. Integrante, desde os tempos de estudante, do projeto que deu origem à clínica – capitaneado nos anos 90 pelas professoras aposentadas Maria Celina Siquara, Iandira Pastor e Sonia Vidal – Goretti conta que a área ampla, colorida e decorada com motivos infantis que hoje abriga os 6 consultórios odontológicos da clínica um dia já foi “um daqueles banheiros grandes de antigamente”. As reformas e aquisições de equipamentos por que foi passando o espaço foram fruto de “um esforço hercúleo” de vários docentes e alunos da área de odontopediatria, que já fizeram incontáveis “cursos, rifas e doações de dinheiro do próprio bolso” para beneficiar o local.
Tanto esforço valeu e segue valendo a pena. “Me emociono ao ver mães que chegam chorando, se sentindo culpadas quando filhos têm algum problema dentário. A gente esclarece que elas não têm culpa, porque não têm informação. A responsabilidade surge a partir da informação. A criança que começa a ir ao dentista antes dos 3 anos tem uma chance enorme de ter uma dentição mais saudável”, afirma a professora.