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Muniz Sodré toma posse na Academia de Letras da Bahia

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Um dos mais, senão o mais respeitado pensador da comunicação no Brasil, com reconhecida inserção internacional num campo de múltiplas estrelas, o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor Honoris Causa da UFBA Muniz Sodré de Araújo Cabral, 77 anos, tomou posse, ontem, 31 de outubro, na Academia de Letras da Bahia. Sucede Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de Oxóssi (02/05/1925-27/12/2018), na cadeira 33, que tem por patrono ninguém menos que o grande poeta romântico e abolicionista brasileiro [Antônio Frederico de] Castro Alves, e conta, na linhagem de seus antecessores, com outros grandes intelectuais negros baianos.

Muniz Sodré, depois da aula extraordinária que proferiu, à guisa de discurso de posse, sobre cultura e ética, comunidade e ancestralidade, articulada ao relato generoso de traços biográficos de seus antecessores na cadeira, em especial o cientista e humanista Heitor Praguer Fróes (1900—1987), foi saudado pelo acadêmico João Carlos Salles, o reitor da UFBA. Em texto previamente escrito, Salles involuntariamente construiu com Muniz um surpreendente e fecundo diálogo precisamente no campo da ética e da cultura, da coragem e do compromisso comunitário, a par de apresentar aos convidados que lotaram o salão nobre do Palacete Góes Calmon, sede da Academia, um rico perfil intelectual e humano do mais novo acadêmico baiano.

Quem conduziu Muniz Sodré da entrada do salão até a mesa para receber do presidente da Academia, Joacy Góes, o colar e o diploma que distinguem seus membros foram os futuros confrades e amigos Fernando Peres, Florisvaldo Mattos e Juarez Paraíso, todos professores aposentados da UFBA.

Logo que teve a posse da palavra, Muniz pediu licença para saudar vivos e mortos e explicou o porquê em sua prosa de refinado escritor “Esta dupla linha de saudação é ao mesmo tempo imperativa e prazerosa. Imperativa, porque estou absolutamente convicto de que o tempo da ancestralidade, quero dizer, o tempo em que se inscreve o destino, em que se enlaçam origem e fim, é sempre o mesmo da vigência ética do discurso de fundação de qualquer grupo humano. 

Esse tempo originário, posto de lado pela consciência da acumulação e pela lógica dos preços, contrapõe-se de forma excelsa ao tempo veloz e mutável da História. Mas oportunamente se impõe, apesar do paradoxo aparente, como uma radical exigência de ética feita pela própria História, diante da falência das promessas do capital e do fim das esperanças políticas.”

Mirando os dias presentes, ele acrescentaria em tom vigoroso: “De fato, meus prezados confrades, a ancestralidade –– a folha no chão –– vem nos ensinar que ética não se resume à codificação de regras de conduta nem a um ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios da virtude.  O que hoje se vem chamando de crise moral ou crise da ética não é a mera violação de valores e regras instituídos (a corrupção, a violência institucional, a mutação nos costumes), mas é o obscurecimento do destino comum, esse destino a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e de conviver,  portanto, a  tudo que implique  um destino comum prefigurado pela razão fundadora da comunidade.”.

Mais adiante, a aula de Muniz se embrenharia por outras explorações da mesma ética erigida no interior da construção da cultura da humanidade. “A ética é precisamente o movimento de escuta coletiva dessa dinâmica abrangente, maior do que os limites da subjetividade instituída, mas imanente a todo e qualquer modo de existir. Ética é a repercussão tácita do desejo ancestral de continuidade do grupo humano instituído. É, se quiserem, o discurso do morto sobre a imortalidade.

“A atitude ética permite o trânsito de ida e volta entre indivíduo e grupo, mas também entre grupos sociais diferenciados. “O grande no homem – diz Nietzsche no Zaratustra – é ser uma transição e uma passagem”. A ética pode ser compreendida como a linguagem íntegra desse trânsito que às vezes não pretende chegar a lugar nenhum, tão-só fruir da caminhada, da alegria da passagem.

Pela economia, nós buscamos a posse dos meios materiais de conservação da vida. Pela política, visamos à agregação civil de seres humanos num território. Pela ética, –– portanto, pelo apelo a valores ancestrais –– aspiramos à clareza e à luminosidade.”

Já em sua saudação, na pegada da mesma preocupação central com a ética, depois de lembrar que estava ingressando na casa “a conjunção rara de um pensador que é também um grande escritor e, para nossa felicidade, um camarada de grande força e caráter”, João Carlos Salles diria:

“O novo confrade tem agora uma nova morada. Vem para um ambiente que naturalmente comporta muitas divergências. Algumas substantivas, outras mais afetas à superfície, como a fraqueza eventual de alguns pelo ponto e vírgula ou alguma particular inclinação política. Mas é um ambiente que, ao fim e ao cabo, não permite tudo. Esta casa não pode, por exemplo, ser cúmplice do obscurantismo e da ignorância, que ora ameaçam as instituições da cultura em nosso país e se voltam exatamente contra o pensamento.

“Estamos, pois, em um ambiente em que cada qual tem o direito a posições únicas e fortes, mas, em virtude do que representa o solo de cultura desta Academia, nenhum de nós, por oportunismo ou por covardia, tem o direito de silenciar diante da violência ou da censura. Não há argumento falacioso que possa pacificar quem alardeie com uma mão apreço pela educação, enquanto, com a outra, abençoa ou justifica quem persegue educadores. Pairando sobre olhares, flutuando por sobre o tempo, querido Confrade, jamais entenda nossa casa como um ambiente de alienação. Esta casa jamais poderia convidar-nos ao silêncio” .

Já no final, Salles conclamou:  “Que estejamos, pois, nestes tempos sombrios, à altura do desafio de proteger as letras, a cultura, as artes, o pensamento, pois esta é afinal nossa missão, esta é nossa morada. Contra toda evidência, mesmo sem o saber, há uma dimensão comum que, em sua origem, é renovada a cada novo membro e nos determina, impedindo que sejamos indiferentes a nosso tempo, que para nós valha qualquer coisa. Acadêmicos não podem cortejar ao mesmo tempo liberdade e tirania — está escrito no contrato, esse que nos lega o direito à memória de nossos irmãos, quando não mais estivermos aqui.”  

Mariluce Moura

 

Veja, a seguir, a íntegra dos dois discursos:

 

Muniz Sodré

 

    Boa noite!

    Senhores acadêmicos, eminentes e agora também iminentes confrades,

    Eu gostaria de inicialmente certificá-los de que recebo com ambas as mãos a generosa honraria de me franquearem, pelo caminho da Cadeira 33, a iniciação à Academia de Letras da Bahia.  Esta é, para mim, uma cerimônia iniciática, uma folha de fundamento no chão da casa.  Por isso, ao reiterar minha alegria, eu peço agô, como se diz na comunidade litúrgica da Bahia: peço licença para saudar vivos e mortos. Vivos, os meus próximos confrades, amigos, familiares, eventuais autoridades presentes.  Mortos, todos os ancestrais, fundadores ou não deste grupo em que agora me insiro.

    Esta dupla linha de saudação é ao mesmo tempo imperativa e prazerosa. Imperativa, porque estou absolutamente convicto de que o tempo da ancestralidade, quero dizer, o tempo em que se inscreve o destino,  em que se enlaçam origem e fim, é sempre o mesmo da vigência ética do discurso de fundação de qualquer grupo humano.  

    Esse tempo originário, posto de lado pela consciência da acumulação e pela lógica dos preços, contrapõe-se de forma excelsa ao tempo veloz e mutável da História. Mas oportunamente se impõe, apesar do paradoxo aparente, como uma radical exigência de ética feita pela própria História, diante da falência das promessas do capital e do fim das esperanças políticas.

   De fato, meus prezados confrades, a ancestralidade –– a folha no chão –– vem nos ensinar que ética não se resume à codificação de regras de conduta nem a um ajustamento moral, decidido por tribunais de meia sola, por falsos monopólios da virtude.  O que hoje se vem chamando de crise moral ou crise da ética não é a mera violação de valores e regras instituídos (a corrupção, a violência institucional, a mutação nos costumes), mas é o obscurecimento do destino comum, esse destino a que se revelam cegas as elites econômicas, políticas, burocráticas e tecnológicas. Por ética, eu me refiro a um apelo radical à dignidade do ato de habitar e de conviver,  portanto, a  tudo que implique  um destino comum prefigurado pela razão fundadora da comunidade.   

       Dignidade, por quê?

       Na sua Metafísica dos Costumes, Kant nos diz que “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem um preço pode ser substituído por qualquer outra  coisa, a título de equivalente; ao contrário, o que é superior a todo preço e em conseqüência não admite equivalente, é o que tem uma dignidade”.

      Ou seja, a dignidade é a única condição capaz de fazer com que uma coisa tenha um fim em si mesmo, portanto, um fim intrínseco e não relativo. A dignidade entendida como “valor interior absoluto”, gerador de respeito do si mesmo, é o farol da ética. Não é espiritualmente transcendente, é imanente ao agir do homem.

     Imanência, portanto. A ética não implica realmente nenhuma transcendência em matéria de valores e normas, não é coisa do outro mundo, e sim uma imanência dinâmica comum a toda habitação humana num espaço determinado, ou seja, ao que corresponde a exigências radicais da própria vida.

      Isso assim se explica: “A vida não se esgota com o que se manifesta no ser vivo. O homem é um ser vivo, mas o que o constitui como vivo está aquém ou além de tudo que perfaz a sua condição de sujeito, seja da consciência ou do inconsciente. Dito com outras palavras: Todo sujeito se sustenta pelo não nascido, pelo não constituído, pelo não existente em tudo que perfaz seu nascimento, sua constituição, sua existência” (Emmanuel Carneiro Leão).  A ética é precisamente o movimento de escuta coletiva dessa dinâmica abrangente, maior do que os limites da subjetividade instituída, mas imanente a todo e qualquer modo de existir. Ética é a repercussão tácita do desejo ancestral de continuidade do grupo humano instituído. É, se quiserem, o discurso do morto sobre a imortalidade.

     A atitude ética permite o trânsito de ida e volta entre indivíduo e grupo, mas também entre grupos sociais diferenciados. “O grande no homem – diz Nietzsche no Zaratustra – é ser uma transição e uma passagem”. A ética pode ser compreendida como a linguagem íntegra desse trânsito que às vezes não pretende chegar a lugar nenhum, tão-só fruir da caminhada, da alegria da passagem.

     Pela economia, nós buscamos a posse dos meios materiais de conservação da vida. Pela política, visamos à agregação civil de seres humanos num território. Pela ética, –– portanto, pelo apelo a valores ancestrais –– aspiramos à clareza e à luminosidade.

    À luz do senso comum, ancestral é o grande homem do passado que, numa comunidade ou numa nação, mantém acesa a lanterna ética, isto é, o farol de continuidade do grupo. Por compatível, eu me valho de uma passagem de Euclides da Cunha: “O que apelidamos grande homem é sempre alguém que tem a ventura de transfigurar a fraqueza individual, compondo-a com as forças infinitas da humanidade”.

     É quando se vislumbra a luminosidade a que nos referimos: “Não dura a vida do homem, e é eterna. É como a luz perpetuamente moça”.

     Que ancestrais buscar nesta comunidade de phylia intelectual denominada Academia de Letras da Bahia?

     Não à toa recorri ao grande e multifacetado escritor modernista brasileiro, mais precisamente à sua conferência em dois de dezembro de 1907 (no Centro Acadêmico Onze de Agosto, São Paulo) sobre aquele por ele classificado como “insigne e extraordinário condoreiro”. Euclides foi taxativo: “Não sei de quem, como ele, entre nós, naquele tempo, tanto se identificasse com o sentimento coletivo, revivente, estimulando-o e aformoseando-o”.

     Estamos, assim, falando do representante notável da terceira geração romântica no Brasil, Antonio Frederico de Castro Alves, o Poeta dos Escravos, patrono desta Cadeira 33. É sinérgica, senão mística, a afinidade entre o patronato e a Cadeira. Há por certo o supersensível do número, mas a cadeira, mais do que base, do que arrimo, do que pedestal é mesmo um lugar, no sentido topológico do termo, de intersecção de energias singulares em torno da condição do negro no Brasil.

     É verdade que o Romantismo brasileiro, desde a primeira geração, é atravessado por certa religiosidade, presente na idealização do sobredivino, do taumaturgo, do imperecível. Euclides, porém, atém-se à atribuição de misticismo a Castro Alves, não por profissão de fé, mas sim pelo inexplicável de ele não ter tido precursores próximos em seu ideário político-social. Este pareceria, antes, originar-se das conquistas éticas da humanidade, simplesmente silenciadas em sua geração. Na energia criativa do poeta, o “eu’ lírico-amoroso é indissociável do realismo com que ele diagnostica a barbárie histórica, a escravatura, fonte de sua revolta e de sua indignação. Ele foi o presidente, no Recife, de uma das primeiras sociedades abolicionistas do Brasil.

     Sabemos o quanto essa associação entre o lirismo e o realismo, entre a criação literária e a causa político-social, é capaz de alvoroçar a pedantaria crítica. Mas já Euclides nos adverte: “A restrição da sua figura literária corresponde ao seu alargamento na História”. A advertência levanta uma questão que interessa de perto aos exegetas da poesia, aos organizadores dos manuais e das coletâneas que são dados a ler aos jovens em formação por críticos literários e por mestres-escolas. 

       A questão: como lidar com o binômio ideia poética/ideia política?

       A História moderna registra duas maneiras.

        Uma é a concepção nazista da política, entendida como estética geral. Isto está resumido na frase célebre de Goebbels: “A política é a arte plástica do Estado”. A concepção nazista pretende figurar as massas como um instrumento do destino. A massa, em si mesma, seria um fato estético.

      Outra é a concepção revolucionária sobre o papel dos artistas. Neste caso, a estética aparece como ação política, isto é, a estética se realiza como finalidade na política. A concepção revolucionária pretende atribuir às massas um destino centrado na renovação da consciência, ou seja, na produção de um novo homem.

      Um grande exemplo disso é dado por Maiakovski, um dos maiores poetas russos do século passado.  Também ator, dramaturgo, militante político,  ele se dispôs a serviço da propaganda revolucionária, sem reduzir a criação poética a fórmulas estereotipadas. Era chamado “O Poeta da Revolução”, mas poderíamos chamá-lo de “poeta do coração”, pois coração é metáfora que atravessa muitos de seus versos. Assim, “comigo a anatomia ficou louca/sou todo coração/em todas as partes, pulsa”.

      Castro Alves, o Poeta dos Escravos, prefigura Maiakovski, no fato de que ambos instalam a ética no âmago da poesia, pois aspiram à dignidade de um novo homem, lastreados numa idealizada humanidade ancestral. É a tradição que funda a revolução.  É o vigor humano do “antes”, do fundacional,  que sustenta o desejo revolucionário. É esse passado que, misticamente, faz deles poetas do amanhã.

       Isso nos faz recordar que a poetisa norte-americana Emily Dickson fala em verso de “um lugar chamado amanhã”. É uma formulação intrigante, porque o amanhã é da ordem do tempo, e ela aí converte o tempo ao espaço. Um lugar chamado amanhã... Emily Dickson nos convida a visitá-lo imaginariamente e nos faz ver que já sabemos alguma coisa desse lugar enquanto possibilidade interna de outra instalação temporal, uma chamada ao presente do futuro que, já aí, na luz ou na sombra, parece aguardar a emergência dos fatores de sua realização. Esse amanhã não é tempo que remotamente virá, mas tempo que vem, disposto que está pela ancestralidade à nossa consciência como uma direção já atribuída ou determinada.

     Prezados confrades, eu gostaria de crer esse tenha sido o auspício bem augurado por  Francisco Xavier Ferreira Marques ao inaugurar a Cadeira 33. Já no último ano da década de 90, eu me permitia assinalar no ensaio   intitulado “Claros e Escuros” que, logo depois de “O bom crioulo” (1895), do cearense Adolfo Caminha (o primeiro romance a reconhecer e valorizar a pessoa do negro), o baiano Xavier Marques publica  “O Feiticeiro” (1922), um romance também naturalista,  em que deixa transparecer a atmosfera litúrgica dos terreiros baianos. São etnograficamente aceitáveis as suas descrições, aparentemente obtidas da própria experiência do autor com o culto nagô.

     O enredo de “O Feiticeiro” equilibra paixões amorosas e políticas com a ação do pai de santo Elesbão, príncipe africano escravizado, áugure que usa o feitiço para conduzir os destinos dos personagens. Aos consulentes, lia a sorte nos búzios, advertia dos perigos, prometia os favores dos deuses e chega mesmo a assegurar a um jovem político que “Ogum ia declarar guerra aos inimigos de D. Pedro”.

     Interessante nesse romance é que, numa época de preconceito feroz contra tudo que dissesse respeito a negros, os personagens tratam ora com temor, ora com reverência, a liturgia afro-brasileira. “Os negros do candomblé? Afirmo. Se há entre eles meliantes e histriões, não são em maior número do que os do nosso credo. O prestígio de um feiticeiro africano aos olhos dos filhos do terreiro não fica atrás do de um prelado de qualquer igreja a quem as damas civilizadas veneram”. Além disso, o texto inteiro contém referências respeitosas a árvores sagradas, oferendas propiciatórias e conseqüências dos feitiços.

     Por menos conhecido que seja o romance de Xavier Marques (a consagração lhe veio com a novela “Jana e Joel”), não se pode deixar de registrar que essa mesma liturgia sedutora e seus desdobramentos lúdicos, culinários, medicinais e éticos correspondiam ao patamar  posteriormente transvalorado pela narrativa literária de Jorge Amado.

    Prezados confrades, admitindo-se a hipótese de que um fio vital costure ou perpasse a Cadeira 33, não sei se terá  sido mera coincidência o fato de  que, no mesmo ano em que Xavier Marques publicava “O  Feiticeiro” (1922),  formava-se, pela Faculdade de Medicina da Bahia, Heitor Praguer Fróes, o segundo ocupante da Cadeira.

    Medicina e Letras, como se articulam?

    Neste caso, a resposta pode ser inicialmente dada por uma notícia do importante jornal Washington Post, em sua edição de 23 de julho de 1943, a propósito da visita do médico baiano à capital norte-americana: “Ser proficiente em dois assuntos tão amplamente distintos como a medicina e a literatura é incomum, para dizer o mínimo. Mas o doutor Heitor Praguer Fróes, da Bahia, Brasil, parece ter dominado os dois ramos do saber com igual sucesso”.

     Neste ponto, parecem-me esclarecedores alguns dados biográficos: Poucos anos depois de formado, mais precisamente entre 1925 ––  período em que a medicina e a ciência alemãs eram influentes nos círculos médicos científicos brasileiros –  Praguer Fróes freqüentou o Instituto Tropical de Hamburgo, diplomando-se em patologia tropical e parasitologia médica. De volta ao Brasil, assumiu a cátedra de Clínica de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da Bahia. Em novembro de 1945, foi nomeado secretário de Educação da Bahia pelo governador João Vicente Bulcão Viana.

    Mas então já era um cientista de prestígio, considerado como autoridade no campo da saúde pública.  Além disso, era presidente da Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, razão de um convite, por parte da Divisão de Relações Culturais do Departamento de Estado, para uma viagem de intercâmbio cultural entre julho e outubro de 1943, no contexto da política de boa vizinhança. Viajou por 30 cidades norte-americanas, conheceu as principais universidades e instituições médicas do país e proferiu 24 conferências sobre assuntos médicos e sanitários, além de outras oito sobre literatura e temas gerais.

     Suas palestras sobre febre amarela e malária repercutiram nas instituições médicas norte-americanas encarregadas de cursos sobre doenças tropicais e epidemiologia. Em New Bedford, o Standard Times, inclusive, saudou-o em editorial: “Hoje New Bedford tem um visitante, que merece as mais sinceras saudações da cidade. Trata-se do Dr. Heitor P. Fróes, do Brasil, um cientista especializado em doenças tropicais (...) Dr. Fróes merece as mais calorosas boas-vindas de New Bedford por duas boas razões. Como cientista, ele tem trabalhado para vencer as doenças tropicais que são pouco conhecidas em nosso país (...) Como autor e palestrante, ele tem compartilhado os frutos de sua pesquisa com cientistas norte-americanos (...)  Quando um homem de tal eminência dedica seu tempo e as suas habilidades ao estudo dos seus vizinhos, nós podemos ter certeza de que a causa da política da boa vizinhança do estabelecimento de melhores relações mundiais está avançando”.

      Ademais de sua produção ficcional (contos, fábulas) e científica (“Lições de medicina tropical”), Praguer Fróes foi principalmente um militante do pensamento erradicacionista, voltado para a extinção dos focos de doenças tropicais. Nisso, foi moderno, eu diria mesmo, pós-moderno, no sentido de associar saúde a desenvolvimento econômico-social. Economistas de renome internacional como Gunnar Myrdall e Celso Furtado alinham-se a esta práxis. A sua atualidade comprova-se em sua participação ativa nas articulações para a campanha de erradicação do mosquito Aedes Egypti nas Américas.

      Basta olhar, prezados confrades, para o panorama devastado dos espaços urbanos de hoje por endemias de febre amarela, dengue, zyka, chikungunya e não se sabe quantas mais doenças epidêmicas negligenciadas, para se ter uma ideia, ainda que diminuta, da relevância de cientistas como Praguer Fróes. A sua ação sanitarista teve, tem e terá importância transnacional. Passado, presente e futuro enfeixados num gesto, eis a marca da temporalidade ancestral, a pregnância do saber imbuído de vigor ético.

    Mas essa é também a temporalidade da memória transindividual ou coletiva. Por isso, eu vou ousar  inserir nessa categoria, ou melhor, nessa gaveta classificatória, dois dos sucessores de Praguer Fróes na Cadeira 33: Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araujo.

    “Memória” não designa aqui nenhuma função psicológica, seja coletiva ou individual, mas a criação, pela narratividade presente, de um passado ou uma ancestralidade politicamente afirmativa.  Considerada do ponto de vista da inserção dos indivíduos num agrupamento complexo, a narração ao mesmo tempo constrói e faz parte da forma de vida sociologicamente identificada com a forma social.

     Forma social é a maneira singular e sensível de ver a sociedade.  Não é uma essência, nem uma substância, nem mero efeito de uma invenção, mas “realidades mediadoras que têm a ver tanto conosco quanto com o que não somos. Elas exprimem uma relação e desempenham ainda nesta perspectiva o papel mediador que lhes foi reconhecido. Não têm apenas um estatuto intermediário entre o concreto e o abstrato, o sensível e o inteligível, o individual e o universal, são também intermediárias entre os dois pólos da relação existencial” (Raymond Ledrut).

      O conceito de forma social parece-nos aqui operativo, porque pressupõe tanto “forma de vida” como “maneira” enquanto figurações da lógica da existência que identificamos nos dois “prosadores da memória”, em Waldemar Magalhães Mattos e Ubiratan Castro de Araujo. A forma deixa transparecer uma modalidade individual e coletiva da existência humana, sem separar radicalmente a ação da representação ou da consciência. Pela forma social, reconhecemos a objetividade da vida em sociedade sem desconsiderar o vivido (subjetivo) dos indivíduos.

    Por meio do relato, seja historiográfico ou memorialístico –– como faz Waldemar Mattos em “Panorama Econômico da Bahia”, “Palácio da Associação Comercial” e em “A Bahia de Castro Alves” ––, seja historiográfico  –– como faz Ubiratan Araujo em  “A Guerra da Bahia” ou  literário em “Sete histórias de negros” ––  a forma social  baiana é apreendida de tal modo que a sua interpretação epocal pode constituir-se em processo de criação de realidade social e assim ser transmitida para as novas gerações. A narrativa garante a memória coletiva como forma de vida, isto é, como manifestação de uma historicidade particular.

        A noção de historicidade, referida a monumentos e documentos, equivale para  o filósofo Paul  Ricoeur à de temporalidade: “A fonte de autoridade do documento enquanto instrumento desta memória (a memória coletiva) é a significância reconhecida ao traço. Só se pode dizer que os arquivos são instituídos e os documentos recolhidos e conservados a partir do pressuposto segundo o qual o passado deixou um traço, constituído graças a monumentos e documentos como testemunha do passado”. O traço aparece, nesse viés, como “signo presente de um passado ausente”, isto é, como um registro com estatuto ontológico dúplice, porque referido a tempos heterogêneos. Num primeiro nível, o traço é algo físico que vem do passado. Num segundo, a existência desse “algo” depende do reconhecimento de alguém, a exemplo de um grupo intelectual que afirme a sua continuidade histórica, como estamos fazendo aqui e agora.

      Traço significa presença da ancestralidade e  ausência do presente na contínua passagem do passado para o futuro. Não é um conceito historiográfico, mas fenomenológico, no sentido de que suspende, por meio do tempo passado, a referência presente, abrindo espaço para outra referência,  criadora de um signo da mudança, objeto do tempo histórico. O traço é, assim, um conector histórico, uma espécie de fio intergeracional que preserva os valores éticos de um passado pronto a ser narrado. Por isso, gostaria de assinalar a passagem de Waldemar Mattos e Ubiratan Araujo pela Cadeira 33 como  “prosadores de traços da memória”.

      Antes de discorrer sobre  a ocupante número cinco da Cadeira, não posso deixar de deter-me um pouco sobre o número três ( 33, desdobrado). É um número de fundamento. Descrito pela filosofia hindu, o três “é uma onda, uma curva senoidal, uma vibração à luz ou ao som. Quando duas ondas colidem, um novo fenômeno é criado. Essa é a criatividade inerente da natureza. Mesmo no nível mais sutil da vibração e das partículas subatômicas, a oscilação intrínseca da natureza desencadeia um ciclo infinito de criação, destruição e recriação. Do número três se originam muitos” (B.K.S. Iyengar).

       Este é um número conhecido nessa mesma profundidade pelo povo de santo, pelas comunidades litúrgicas afrobrasileiras, porque é o mesmo do primogênito mítico, mas também do pai-ancestral, denominado Exu.

      Não tenho dúvida de que o número três abriu o caminho para que o número cinco, afim à divindade Oxóssi, cultuada por  Mãe Stella de Oxóssi, ajudasse em sua instalação na Cadeira 33 como quinta ocupante. Uma biografia simbolicamente exemplar: Maria Stella de Azevedo Santos nasceu no quinto mês de 1925, na cidade de Salvador e formou-se em Enfermagem pela Escola de Saúde Pública da Bahia, em 1945.  Ficou 41 anos à frente do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, uma das três casas matriciais dos cultos afrobrasileiros.

      O que haveria de muito auspicioso, no reconhecimento ético-político que se presta a uma zeladora de orixás como Mãe Stella de Oxóssi?

    É que existe um forte sentido ético-político nos modos de persistência dos cultos, ao combinarem a força interna de sua liturgia com as alianças simbólicas implícitas entre eles e determinados segmentos da sociedade global. O desafio de toda ética é recusar as abstrações universalistas em favor de uma determinação concreta do sujeito. Para o indivíduo da comunidade litúrgica, sempre se tratou de uma luta ética e política (embora não político-partidária) para inscrever a singularidade afro-brasileira no espaço da coexistência nacional.

       Para os africanos e os descendentes de africanos no Brasil, recém-saídos de uma Abolição que lhes negara qualquer assistência econômica e social, que os deixara sem terras, para esses aspirantes à cidadania, era imperioso um lugar que lhes garantisse ao menos a soberania do espírito.

Era uma preocupação que ia além da própria comunidade negra. Rui Barbosa, o grande tribuno patrício, dizia que “a escravidão gera a escravidão, não só nos fatos sociais como nos espíritos”. Joaquim Nabuco, seu confrade pernambucano, o secundava: “Não basta acabar com a escravidão, é preciso acabar com a obra da escravidão”

       A experiência da cultura jeje-nagô-ketu reflete exemplarmente a ancestralidade e a visão-de-mundo características da civilização africana. Em torno da família-de-santo ou das comunidades litúrgicas de origem africana, conhecidas como candomblés, criou-se um modelo singular de organização social da gente negra. Fundou-se aqui, portanto, num espaço privilegiado, destinado a se tornar uma metáfora espacial da África mística, um egbé, uma comunidade litúrgica, um terreiro, onde habitariam as divindades, os homens, as mulheres e seus frutos. Mas onde também, implicitamente, se resistiria à violência da assimilação cultural que tentava sempre exercer a consciência esclarecida pela monocultura européia. Portanto, comunidade litúrgica e quilombo.

    Na verdade, tudo sempre foi um empenho por bom senso e por dignidade, como transparece em algumas das frases de Ana Eugênia dos Santos, Mãe Aninha, fundadora do Axé Opô Afonjá, nas cartas que escreveu às suas filhas-de-santo Agripina e Filhinha entre os anos de 35 e 37. Uma dessas é especialmente marcante: “Depois de eu ter folha no chão, não vou apanhar estrume com a mão”.

      Nada disso pode ser entendido pela pura abordagem culturalista ou folclorista, e sim como um agir político grupal, de natureza civilizatória. Há de fato um singular agir político na transmissão patrimonial da liturgia negra. Nenhum patrimônio cultural socialmente operativo se transmite como um pacote inerte, um estoque de ativos dados para sempre, mas como algo que é preciso reinserir na História presente, atribuindo-lhe novos contornos, revivificando-o.

    Mãe Stella de Oxóssi foi um ponto alto e intelectualizado na governança litúrgica. Em 1981 criou o Museu Ilê Ohun Lailai, preservando a memória do culto africano. Em 1986 foi eleita na Conferência Internacional de Tradição dos Orixás e Cultura, em New York, representante do Brasil. Publicou livros marcantes como  “Epé Laiyé- terra viva” (2009), “Owé – Provérbios” (2007), “Òsósi – O Caçador de Alegrias” (2006), “Meu Tempo é Agora” (1993), “E Dai Aconteceu o Encanto” (1988).

    O Terreiro do Axé Opô Afonjá é África reterritorializada, reinventada. Um exemplo notável dessa reinvenção é o Corpo dos Obás ou Doze  Ministros de Xangô, inspirado na instituição palaciana de Oió, Nigéria. Divididos em duas falanges –– seis da direita (Otun) e seis da esquerda (Osi), assim como o machado duplo de Xangô ––, os obás têm assento ao lado da ialorixá, como ministros ao lado do rei. Não é uma recriação aleatória: caberia ao obá, cabe de fato ainda hoje ao obá, lutar por aquela “folha no chão” de que falava  Mãe Aninha, isto é, lutar pela dignificação da comunidade litúrgica.

       Ao suceder Mãe Stella na Cadeira 33, como sexto ocupante (seis é número do orixá Xangô), permito-me reiterar a declaração de grande alegria existencial por integrar com o nome honorífico de Obá Aressá, o  Corpo dos Obás. Acho que fui o primeiro obá a ser confirmado dentro da regência de Mãe Stella. Um obá, digamos, “kekerê” (pequeno) quando penso em outros nomes, outras personalidades ( Obá Kankanfô, Miguel Santana, Camafeu de Oxossi, tantos outros...) irmanadas nesse Corpo. Um obá de escasso saber iniciático, mas com fé e muita abertura para o aprendizado com velhos e novos.

         Mas eu que dormi por obrigação na esteira ritual, perto da folha no chão, sigo agora na esteira acadêmica de Mãe Stella de Oxóssi, estendida pela generosidade desta comunidade de Letras.

          O que aqui me traz?

          Eu peço licença para reiterar a resposta à chamada que ensaiei anos atrás, ao ser distinguido com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia, onde me graduei. Eu me oriento intelectualmente pela pesquisa do sentido forte da cultura. Essa busca, marcada por empenhos diversos,  comporta uma vicissitude que atravessa, em modalidades diversas, a minha vida acadêmica e minhas próprias motivações existenciais.

       O primeiro empenho refere-se à temática da realidade da informação pública –– isso que se tem chamado de “mídia” sob o influxo dos  tempos neoliberais –– , evidenciado em minha atividade universitária, livros, artigos e conferências tanto no Brasil como no exterior. É algo que me envolve desde os quinze anos de idade quando comecei no “Jornal da Bahia” ao lado de jovens como Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro e Wilter Santiago, sob a tutela de jornalistas veteranos como João Batista de Lima e Silva, Ariovaldo Matos, João Carlos Teixeira Gomes, Flavio Costa, José Gorender, Otacilio Fonseca e outros, liderados pelo empresário, ativista e escritor João Falcão. O jornal foi a minha primeira universidade.

    O segundo empenho diz respeito ao sentido de cultura e ao vigor da diversidade cultural. Não se trata da diversidade prolífica de “objetos” culturais (software, canções, filmes, livros etc.), que se multiplicam na dita “sociedade da informação” e que concorrem para a mitologia de um novo tipo de democracia, definida pelo acesso a esses objetos. Eu me preocupo, antes, com “sujeitos de cultura”.  De fato, concebo outro sentido para a cultura, um sentido pleno ou forte, em que a cultura se investe de outra economia, cujos bens não circulem prioritariamente no mercado, e sim num “tecido intersticial que separa e religa os sujeitos”. Cultura, como essa capacidade que tem o sujeito de inscrever no tempo a sua relação imaginária com todos os outros sujeitos por meio de operações simbólicas.

    O sujeito da cultura seria, assim, um sujeito da memória (a memória de sua inserção específica no mundo) e um sujeito da promessa, no sentido de sua fidelidade ou sua vinculação a um mundo em comum. Seria, portanto, um sujeito político, no melhor sentido que esta palavra possa ter. Sujeitos da cultura, individuais ou coletivos, claros ou escuros, são aqueles que no passado e ainda hoje imprimem a marca da transformação nas relações sociais brasileiras.

     Trata-se de uma perspectiva que concebe o presente de uma cultura como o vir-a-ser humano na criação de um sentido continuamente refeito entre o passado e o futuro, e não como mero “presenteísmo” implicado na hipertrofia consumista do instante.  Não concebo cultura como opressão do iletrado, nem escrita como chicote da oralidade, nem pensamento como xadrez  do espírito jogado por esnobes.

       O que me atrai é a visceralidade comunitária, onde a vida em si mesma, em seu todo, é feita de  solidariedade e fé. É isto o que me faz não abrir mão do discernimento crítico. É isto que, ao mesmo tempo, me faz buscar na cultura negro-brasileira um sentido para o estar-no-mundo de amplas frações da população nacional, sempre atento aos interstícios, às fendas e às dobras no tecido do discurso social hegemônico.  Meu trabalho versa principalmente sobre aspectos problemáticos das identificações nacionais.

      Pessoalmente,  quero crer ter sido fortemente marcado pela experiência de associar liturgia à habitação da cidade de Salvador. Algo assim como o Quasímodo de “Notre-Dame de Paris”, para quem, na narrativa de Victor Hugo, a catedral tinha sido “o ovo, a casa, o ninho, a pátria, o universo”. Em imagens mais intensas: “Poder-se-ia quase dizer que ele havia tomado a sua forma como o caracol toma a forma de sua concha. Ela era sua morada, sua toca, seu invólucro... Ele estava, por assim dizer, colado a ela, como a tartaruga à sua casca. A rugosa catedral era sua carapaça”.

    Ser é originariamente morar. Salvador é uma cidade-ninho, onde desfruto  a intimidade de uma velha casa. Uma cidade  que se oferece como uma toca,  como uma roupagem, de gala para uns, em farrapos para outros, mas sempre uma vestidura, ainda quando  se experimenta o desconforto da morada. De fato, as cidades podem ter algo que chamamos de  “espírito”: espírito é o invisível atuante na cidade. É o seu potencial ético, que nos permite ver o invisível nas coisas visíveis, isto é, que se escute a voz da fundação, do Pai Morto, do Egun da Cidade. É uma voz que educa. Aqui, como o Riobaldo de “Grande sertão, veredas”, “eu me inventei no gosto de especular ideias”. Para isso, tenho procurado seguir o preceito do Terreiro: “Quem joga água no caminho anda em areia macia”.

       Prezados confrades, de pé na trilha das Iyás ou sentado na Cadeira 33,  eu espero  zelar  aqui também pela folha no chão.

     Muito obrigado!

 

DISCURSO DE RECEPÇÃO A MUNIZ SODRÉ DE ARAÚJO CABRAL

 

João Carlos Salles

 

Excelentíssimo Presidente, Confrade Joaci Góes,

Em cujo nome cumprimento a mesa e as autoridades presentes, os demais confrades e confreiras, bem como os amigos e familiares do novo Acadêmico.

 

Senhor Acadêmico Muniz Sodré de Araújo Cabral.

 

1.       O reino de Deus está próximo — é o que, hoje, tenho a anunciar. Isso é um tanto óbvio, e talvez já tenha sido dito antes, mas necessita de alguma explicação. Não aponto agora para um evento messiânico a nos aguardar em algum tempo futuro. Quero sim sugerir uma presença próxima, um halo constante, uma contiguidade, até mesmo uma participação no sagrado, em especial, em instituições como a nossa, mas sobretudo sensível na recepção de um novo acadêmico, um momento que nos lembra o próximo e o distante, a saber, esta condição de sermos a face transitória de um sempre.

Para além de nossa condição humana, deveras precária, é tanto mais evidente essa presença do sagrado na saudação a um novo acadêmico, que não pode ser reduzida a uma mera efeméride, não se limita a um registro cartorial, mas constitui sim um momento especial de nossa cultura e, logo, de nossos mais profundos laços e compromissos subjetivos. Não é uma taxonomia, um registro histórico, que classifica como imortal o novo acadêmico, mas antes o ânimo, ou melhor, nossa anima, agora compartilhada, que torna comuns e duradouras as nossas medidas. Enfim, um gesto cultural forte é o que se impõe, uma aposta conjunta no terreno e no sagrado, ou talvez uma aposta do sagrado na miudeza de nossas vestes e cerimônias.

Preferimos, pois, apontar para o mais alto. Trata-se de um gesto de cultura, que nos fixa em um tecido pelo qual se unem e se separam sujeitos, como se fôssemos fios coloridos costurados em um manto de Antônio Bispo do Rosário, cada qual marcando uma posição perante outros sujeitos por meio de cores e distâncias simbólicas. Aceitamos, assim, cifrar e decifrar nosso olhar no enigma pespegado no olhar dos outros, firmando compromissos em uma trama de cultura, pensada aqui, na expressão de Muniz Sodré, “como vir-a-ser humano na criação do sentido”.

Por isso mesmo, desafiado pela grande honraria que me conferiu o novo acadêmico ao escolher-me para saudá-lo, obriguei-me a pensar sobre o significado deste momento, julgando ser minha obrigação favorecer nosso reconhecimento recíproco e, para tanto, procurei juntar algumas de minhas palavras e expressões a seu próprio vocabulário, que passa agora a enriquecer esta nossa morada.

A Academia de Letras da Bahia pode até não ser “o ovo, a casa, o ninho, a pátria, o universo”, tal como Notre-Dame o fora para Quasímodo, mas é uma casa de cultura, no sentido bem próximo daquele emprestado pelo novo acadêmico à palavra ‘cultura’, em seu discurso como Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia:

Cultura seria, assim, essa capacidade que tem o sujeito de inscrever no tempo a sua relação imaginária com todos os outros sujeitos por meio de operações simbólicas. Isto implica uma temporalidade intersubjetiva em que se reconhece o lugar do outro –– entenda-se: a constituição da imagem do sujeito no olhar do outro, pleno de autoridade –– dentro de uma dimensão comum.

Se lugar de cultura, a Academia não é um prêmio, mas um permanente desafio. Ela não é um palco para a vaidade ou a inteligência de seus membros — sendo claro que temos todos muita inteligência e pouca vaidade. Longe disso, a Academia é ardilosa para além de seus membros. Ela tem sabedoria para além de nossa precária astúcia. Ela nos obriga, afinal, a um diálogo, ao qual nem sempre estamos dispostos ou acostumados, e também a ter posições contra nossas inclinações mais naturais. Ela nos diz, por exemplo, em momentos como este, o quão passageiros somos e o quanto dependemos do outro para constituir medidas pelas quais, verdadeiras ou falsas, não devemos ser esquecidos. Lembrem-se de suas obrigações, diz-nos hoje o espírito da Academia, vez que o reino de Deus está próximo.

 

2.      A Cadeira 33, que tem agora novo titular, tem um brilho especial, devemos convir. Seu patrono, ninguém menos que Antônio de Castro Alves, à sombra de cujos versos muitos de nós nos iniciamos nas letras. Dessa Cadeira, foi fundador Xavier Marques, filho de Itaparica, também membro da Academia Brasileira de Letras, ao qual se seguiram o cachoeirano Praguer Fróes, Waldemar Mattos, filho de Entre Rios, e enfim os grandes representantes da grandeza histórica do povo negro e de sua sabedoria ancestral, nosso querido Ubiratan Castro, Bira Gordo, de Salvador (e de São Lázaro!), e Maria Stella de Azevedo dos Santos, nossa Mãe Stella de Oxóssi, também soteropolitana — aquela luz que, como Ialorixá, cumpriu de modo tão sublime a missão de dar nascimento à essência sagrada de tantas pessoas.

Quando me fiz portador da mensagem de vários confrades e confreiras (lembra, Paulo Costa Lima?), pois queríamos submeter seu nome ao devido escrutínio para ocupar essa Cadeira e, em vista disso, lhe pedíamos a prévia autorização, Muniz Sodré me respondeu:

É honra e alegria saber que fui lembrado. Suceder a minha ialorixá, eu que sou Obá do Axé, seria muito bom. Mas eu lhe respondo ainda hoje, estou fora de casa, vou olhar os búzios...

Confesso que sua resposta imediata somente confirmou a justeza de nossa percepção, a de que Muniz reunia, em grau elevado, as manifestações mais públicas de sua qualidade acadêmica e as manifestações mais íntimas de grandeza espiritual. Em suma, estávamos diante de um grande intelectual. Quase sete horas depois, recebi a mensagem que fez desencadear nossa campanha, por completo, vencedora:

Prezado João Carlos, búzios consultados, aceito o honroso convite para a disputa. Abs. Muniz.

E aqui estamos, sendo agora uma honra para mim, filho de Cachoeira (e também cidadão soteropolitano), saudar e celebrar esse baiano de São Gonçalo dos Campos, em seu ingresso nesta confraria singular, a Academia de Letras da Bahia, como titular da Cadeira 33.

 

3.      Nascido em 1942, o baiano Muniz Sodré de Araújo Cabral tem formação rica e multidisciplinar: direito na UFBA, em 1964; mestrado na Sorbonne, Paris IV, em Sociologia da Informação e Comunicação; doutorado em Letras, na UFRJ. Mas não é só isso. Poliglota, capoeirista e faixa preta de judô, poderíamos dizer que, para além da formação acadêmica mais canônica, é também, a seu modo, um autodidata, mas desses que, a todo tempo, lançam olhos famintos a temas diversos e, por muito ruminarem, reelaboram com originalidade tudo que tocam.

Daí, talvez, essa sem cerimônia, em todos os seus textos, de passear pelos clássicos e pelos contemporâneos, de lhes lançar a palavra, seja em aproximação, seja em desafio; de ser sociólogo, antropólogo, filósofo, como forma de ser teórico da comunicação. Natural, nesse cenário, que seja também pesquisador 1A do CNPq, membro de diversos conselhos editorias e palestrante dos mais solicitados.

Daí, também, a condição permanente de intelectual desbravador, capaz, a um só tempo, de descoberta e invenção. Ao que me chegou, pela fonte segura de Mariluce Moura, cujo mestrado e cujo doutorado orientou, Muniz Sodré costuma dizer que se lançou à comunicação porque era um terreno em que ninguém estava interessado a sério e, por isso, era menos disputado e mais fácil, além de menos visado nos anos da ditadura. Modéstia óbvia, um quê de boutade minimalista, acredito, mesclada talvez com um pouco de ironia.

Embora difícil para mim, alegra-me imaginar um tempo em que o terreno da comunicação era pouco disputado. Como quer que o seja, Muniz Sodré tem seu lugar entre os principais intelectuais brasileiros por ter pensado a comunicação, desde o início, produzindo trabalhos com o frescor de clássicos instantâneos, provocativos e originais. O monopólio da fala e A comunicação do grotesco logo se tornam livros obrigatórios, elevando o paideuma dos cursos de comunicação Brasil afora. E clássicos imediatos se sucedem, consolidando a obra desse grande pensador brasileiro da comunicação, cujos trabalhos, apenas em livros, já superam as quatro dezenas. A máquina de Narciso, de 1992, e Antropológica do Espelho, de 2002, afirmam-se como trabalhos seminais no campo da comunicação, e isso em termos globais — vez que a “pegada” dos teóricos da comunicação só tem par na dos filósofos, ou seja, é sempre planetária.

Em Antropológica do Espelho, em especial, ele procura desvendar o caráter do vínculo entre mídia e sociedade — afetivo, não racional, como era o vínculo original com os meios de comunicação impressos, de tradição publicista — e chega à sua proposição mais ousada e, por isso mesmo, a mais combatida: o conceito de bios midiático ou bios virtual, um real sem espaço e sem tempo, cuja seiva é, porém, a economia monetária. Não se trata do bios do prazer, do conhecimento ou da política, tal como classificava Aristóteles. A mídia seria o quarto bios, segundo afirma:

o midiático, virtual, da vida como espectro, da vida como quase presença das coisas. É real, tudo que se passa ali é real, mas não da mesma ordem da realidade das coisas.

Noções polêmicas, sim, mas instigantes; para além de sua verdade, valem pelo modo como organizam a experiência da comunicação e, por conseguinte, pelo modo como mudam nosso foco de análise, nosso pensamento sobre sua natureza e sentido. Nesse livro, aliás, com ares de oráculo, ele reflete sobre a internet e lhe antecipa os traços mais atuais desse regime de radical visibilidade em que as mídias ora nos lançam, numa espécie de multiplicação panóptica e recíproca do ver e do ser visto, que, com efeito, anula a noção anterior de privacidade. Podemos então falar de controle total, ao falarmos de imersão total, a mídia como prótese ontológica para o controle social, na qual não mais é possível discernir por completo o real do irreal:

(...) hoje não podemos ser instituídos como simples espectadores. Somos, sim, membros orgânicos de uma ambiência que deixa de funcionar na escala tradicional do corpo humano para se adequar existencialmente.

Em suma, criada pela existência e pelas relações que a mídia estabelece no espaço social, temos com o bios midiático uma nova forma de vida — conceito que bem pode agradar a algum eventual wittgensteiniano.

Muniz Sodré, como um clássico, nos ensina a pensar. Por isso, somos conduzidos por ele a pensar a comunicação sempre no contexto da cultura. Mais ainda, em exercício permanente de epistemologia comparada (no qual, aliás, mostra-se sempre apto a deslocar-se com facilidade, como a falar do interior de tradições a princípio opostas), Muniz Sodré pensa poderosamente a cultura tendo em conta o registro mais refinado da tradição ocidental e o extraordinário refinamento de outras tradições culturais — o que, no caso brasileiro, implica pensar a cultura branca ocidental frente à cultura negra, dando voz a esta desde um lugar especial, a saber, o terreiro de candomblé. Esse pensador, que muita vez é como um irmão intelectual de colegas franceses, como se em linha direta com Deleuze, Barthes, Bourdieu ou Baudrillard, não esquece em qualquer momento uma outra matriz de pensamento, carregada de ancestralidade e, aliás, bastante baiana.

A verdade seduzida, de 1994, e Claros e escuros, de 1999, expressam bem o fôlego desse exercício singular de pensamento, que toma sua forma mais madura em seu mais recente Pensar nagô, ensaio de comunicação transcultural que nos convida a um diálogo e a um encontro entre modos diversos de crer, existir e pensar, mas permitindo-se um deslocamento profundo do olhar e passando a ler outras metafísicas desde um ponto de vista e de existência que nos mostra e nos demonstra como um lugar privilegiado e pleno do pensamento o que se modula segundo um paradigma afro. Para quem necessita de ar e luz, nada melhor do que cor e oxigênio.

Muniz Sodré, intelectual profundo, é ademais um militante comprometido com “o real histórico”. É ainda, sabemos bem, uma personalidade singular de resistência forte e tranquila ao racismo estrutural da sociedade brasileira e do Ocidente todo. Além disso, sua literatura madura, seus cantos denunciam outro traço admirável, que nos faz desejar que esteja conosco o mais possível. Não deixem de ler A lei do santo! Seu texto literário denuncia um conversador fascinante, cultor da palavra rica e precisa, mas grande contador de histórias, nas quais podemos adivinhar desde sorrisos irônicos a gargalhadas francas, que aliás nos performam mais humanos.

Em suma, ingressa hoje em nossa casa a conjunção rara de um pensador que é também um grande escritor e, para nossa felicidade, um camarada de grande força e caráter. Muniz Sodré é sim uma das boas provas de que, mesmo sendo rara a conjunção, inteligência e caráter podem andar juntos. Julgo assim ser um bálsamo sua chegada, Muniz, ela nos joga água no caminho e nos faz andar em areia macia.

 

4.      Parte da tarefa do discurso de recepção está cumprida. Em traços breves, que espero não tenham sido muito injustos nem muito cansativos, procurei dizer a todos quem penso ter se juntado a nós, quem enfim seria esse tal de Muniz Sodré, antes mesmo de estar aqui. Entretanto, aonde chegou? Onde está agora? Que lugar é esse no qual você se meteu, meu caro, cheio de senhoras e senhores nada recatados? Quem somos nós? Ou melhor, quem devemos ser? Qual é o nosso sempre, para além de nossa precariedade?

Devo antecipar, como quem conta o final de uma história para lhe dar sentido, que julgo ser uma boa astúcia da razão a que nos mobilizou a todos para trazê-lo a nosso convívio — o que muito facilita a tarefa de lhe indicar o sentido deste lugar. Como durkheimiano convicto, acredito que as instituições têm consciência e, mesmo, têm instinto, inclusive de sobrevivência. Elas sabem do que precisam se alimentar. Instituições cismam a todo instante, cuidam de sua renovação, sabem, enfim, com sua mente etérea, que precisam reproduzir seus melhores valores.

Por isso mesmo, posso avivar, ao concluir, a dimensão do político, pois nada melhor para uma saudação do que chamar a atenção, não de quem entra, mas de quem recebe, o que nos torna aqui e agora dignos desse lugar, como se irmanados fôssemos por saltarmos juntos uma fogueira em uma noite de São João. E, nesse sentido, digo a mim mesmo como lhes digo. A Academia, esta casa, pede a cada um de nós que façamos o impossível. Que nos retiremos de nós mesmos, que nos subtraíamos história e geografia próprias, e façamos dialogar universos imiscíveis.

Não nos iludamos. Esse preço não pode ser pago, e tolo será quem acreditar em tal ilusão. O diálogo possível entre nossos universos apartados, esse que tecemos em palavras e gestos, nos solicita carnes humanas e ninharias mortais. Tal diálogo não nos exige alguma ideia abstrata, mas sim a palavra concreta. Não é elevação extática, mas a exata oferenda, que será alimento ou dádiva, presente em cada um por revivermos gestos antigos e imemoriais.

O novo confrade tem agora uma nova morada. Vem para um ambiente que naturalmente comporta muitas divergências. Algumas substantivas, outras mais afetas à superfície, como a fraqueza eventual de alguns pelo ponto e vírgula ou alguma particular inclinação política. Mas é um ambiente que, ao fim e ao cabo, não permite tudo. Esta casa não pode, por exemplo, ser cúmplice do obscurantismo e da ignorância, que ora ameaçam as instituições da cultura em nosso país e se voltam exatamente contra o pensamento.

Estamos, pois, em um ambiente em que cada qual tem o direito a posições únicas e fortes, mas, em virtude do que representa o solo de cultura desta Academia, nenhum de nós, por oportunismo ou por covardia, tem o direito de silenciar diante da violência ou da censura. Não há argumento falacioso que possa pacificar quem alardeie com uma mão apreço pela educação, enquanto, com a outra, abençoa ou justifica quem persegue educadores. Pairando sobre olhares, flutuando por sobre o tempo, querido Confrade, jamais entenda nossa casa como um ambiente de alienação. Esta casa jamais poderia convidar-nos ao silêncio.

Doutor Honoris Causa da UFBA, Professor Emérito da UFRJ, e cumulado de honrarias e reconhecimento, Muniz Sodré chega à nossa casa. É convidado, então, por estar aqui, a nunca abrir mão do juízo crítico, pois essa é a melhor forma de avivar-nos a visceralidade comunitária, de honrar, enfim, servindo-me de seus termos, “os sentimentos de fidelidade e promessa, que marcam o sentido forte da cultura”.

Que estejamos, pois, nestes tempos sombrios, à altura do desafio de proteger as letras, a cultura, as artes, o pensamento, pois esta é afinal nossa missão, esta é nossa morada. Contra toda evidência, mesmo sem o saber, há uma dimensão comum que, em sua origem, é renovada a cada novo membro e nos determina, impedindo que sejamos indiferentes a nosso tempo, que para nós valha qualquer coisa. Acadêmicos não podem cortejar ao mesmo tempo liberdade e tirania — está escrito no contrato, esse que nos lega o direito à memória de nossos irmãos, quando não mais estivermos aqui.

Poderíamos imaginar um acadêmico autêntico, qualquer a sua inclinação política, qualquer o seu interesse externo, que não esteja indignado com os atuais retrocessos culturais? Poderíamos imaginar nossos confrades e confreiras, que aqui ingressaram pelo serviço à palavra, pelo valor de sua presença coletiva, por sua reconhecida devoção ao bem comum, acaso tocados por argumentos falaciosos, que, sobre serem fascistóides, são preguiçosos e indigentes?

 

5.      Amigo e confrade Muniz Sodré de Araújo Cabral, não entramos nesta casa por mera vaidade. Mesmo sendo uma grande honraria, seria difícil imaginar um acadêmico que seja apenas vaidoso. Não que o sejamos pouco; apenas não temos o direito de ser apenas vaidosos. Aliás, morro de medo por ser membro da Academia de Letras da Bahia. Espero que tenhamos medos semelhantes e que esses medos que valem a pena não desapareçam.

Acadêmicos podem e devem sim alimentar grandes medos, medos privados e medos cívicos. O medo de que as musas nos abandonem, de que nos embotem os sentidos, de que nos escapem as ideias, as cores, os sons, as palavras. O acadêmico, ademais, mesmo para viver seus medos privados, não pode ser pusilânime. Deve alimentar sobretudo o medo de abandonar, por alguma fraqueza, os valores da cultura que a Academia associa a nossos precários nomes. Esse é talvez o grande desafio, o de sermos lembrados pelo que merece ser lembrado.

A Academia não apaga a ancestralidade, antes a faz sobressair; não esmaece o fato de sempre estarmos em um mundo, uma raça, um corpo, pois acentua nossa instalação mesma, que é assim chamada a enriquecer e a dar conteúdo ao que, de outro modo, seria perene apenas por ser vazio. A Academia, portanto, não suprime a temporalidade, pois antes a torna ainda mais viva e desafiadora, vez que tocada a todo tempo pelo sagrado.

Quando leio seus textos, Muniz, quando vejo a textura de suas belas frases, reconheço imagens digitais, onde meus textos resvalariam em puro gongorismo. Temos aí uma diferença, e me desculpo por isso. Valho-me, porém, dos artifícios que domino. Ou seja, recorro a meus artifícios barrocos para dar boas vindas a um intelectual de grande porte, convidando-me e a todos nós para um produtivo deslocamento de posições e olhares, capaz de abrigar o exercício paciente de conflitos e complementaridades.

Se chega agora à Academia, Muniz, o espírito da academia já o habitava. E, se já carregava dentro de si a academia, é o novo acadêmico que na verdade nos saúda e justifica. É o novo acadêmico que sempre nos testa. Ele nos lembra o momento de nosso ingresso e nos convida a renovar os votos. Será que conservamos o voto primacial e a honra originária? Será que preservamos nossa dignidade e o brilho que nos fizeram aqui ingressar? Que não tenham sido um mero fogo fátuo!

Perante tamanho teste que é o de receber um novo acadêmico, concluo. A fórmula derradeira da recepção não pode ser esta: Seja bem vindo, Muniz Sodré de Araújo Cabral. Mas sim, renovados os votos, sejamos nós todos novamente bem vindos a esta casa, pois aqui, agora e sempre, o reino de Deus está próximo.

 

(Foto: Tiago Caudas - Correio*)