O livro “O Culto da Serpente no Reino de Uidá: um estudo da literatura de viagem europeia – séculos XVII e XVIII”, da professora e pesquisadora baiana Lia Dias Laranjeira, foi referência para a Escola de Samba Unidos do Viradouro, campeã do carnaval do Rio, em 2024. No desfile, a agremiação apresentou o enredo “Arroboboi, Dangbé”, homenageando o vodum serpente, culto que chegou aos terreiros de candomblé da Bahia trazido pelos negros escravizados. O livro foi publicado pela editora da Universidade Federal da Bahia, a Edufba, em 2015.
A pesquisa que resultou nesta publicação teve como objetivo analisar as narrativas sobre o culto a Dangbé, no reino de Uidá, presentes na literatura de viagem europeia do final do século XVII e início do século XVIII. Esse período abrange a consolidação do reino na Costa da Mina até ser invadido pelo reino de Daomé, no litoral do atual território do Benim.
Nessa pesquisa, a autora, que é colaboradora do Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA, focou nos relatos dos viajantes sobre o reino de Uidá, as disputas com outros reinos locais, as tensões e negociações entre lideranças políticas, as práticas religiosas do reino e mais especificamente tudo o que dizia respeito à serpente Dangbé.
Foi um trabalho exaustivo de tradução, comparação, identificação de cópias, interpretação e também de reconhecimento das fontes orais dos viajantes estudados, lembra a autora, que também pesquisou a bibliografia que existia sobre o comércio de escravizados dessa região, sobre as práticas religiosas locais e sobre os viajantes na Costa da Mina.
No primeiro capítulo ela apresenta um panorama histórico do contexto das viagens realizadas pelos autores e trata dos aspectos históricos, geográficos e culturais do reino de Uidá. No segundo, conta as histórias de vida e a produção literária de cada autor estudado, incluindo a interpretação dos principais aspectos literários pertinentes às obras centrais da investigação. A discussão acerca das representações das práticas religiosas africanas na Europa no período citado e a apresentação do cenário das práticas religiosas em Uidá, são os assuntos abordados no terceiro capítulo.. Ao tratar especificamente das narrativas e representações relacionadas ao culto da serpente, faz uma divisão temática a partir do destaque dado pelos autores estudados e da relevância na estrutura do referido culto.
Assim, ainda no terceiro capítulo, Lia Laranjeira apresenta e analisa as narrativas sobre a origem do culto à serpente, em Uidá. No capítulo seguinte faz o mesmo com as narrativas e representações que dizem respeito às oferendas e às interdições e, no último, focaliza, dando maior ênfase às narrativas e representações pertinentes aos ritos iniciáticos e à posição das sacerdotisas do culto da serpente.
Pequeno histórico desse percurso
Em 2006, durante a graduação em Ciências Sociais, na UFBA, a aluna Lia Dias Laranjeira integrou um projeto de pesquisa, como bolsista de iniciação científica, sobre as práticas religiosas na Costa da Mina, sob coordenação do professor Luis Nicolau Parés. Neste projeto, que teve financiamento do CNPq, trabalhou com a tradução e sistematização dos relatos de viajantes europeus na Costa da Mina, nos séculos XVII e XVIII. A investigação teve como resultado a criação de uma plataforma digital de pesquisa sobre as práticas religiosas nesta região do continente africano hospedada pelo servidor da UFBA (https://costadamina.ufba.br/)
Posteriormente, a estudiosa se aprofundou mais sobre o culto a Dangbé em Uidá quando realizou o mestrado, no Pós-Afro, Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos, da UFBA, sediado no CEAO-Centro de Estudos Afro-Orientais. Hoje é colaboradora deste programa de pós-graduação. Essa investigação do mestrado, orientada por Luis Nicolau, resultou no livro “O culto da serpente no Reino de Uidá: um estudo da literatura de viagem europeia-séculos XVII e XVIII”, publicado pela editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba), em 2015.
Sobre publicações de pesquisas didáticas
Para a diretora da Edufba, Susane Barros, o importante para a Editora é dar visibilidade ao trabalho da autora e à própria UFBA. “Como é um livro resultante de pesquisa ele tem uma profundidade do tema abordado e, ter sido publicado por uma editora universitária, aumenta a credibilidade como fonte utilizada. Além disso, é muito bom saber que temos um livro em nosso catálogo que fala sobre um tema que não é tão explorado. Isso mostra o quanto nosso catálogo é rico.”
Para Susane o fato demonstra, também, a importância da publicação dos resultados de pesquisas em livros, pelo fato dessas obras atingirem um público mais amplo, sobretudo os livros acadêmicos, que não investem somente no lucro das vendas. “É a certeza de que estamos cumprindo com o nosso papel, divulgando por meio dos livros aquilo que fazemos na universidade, seja resultante de atividades de ensino, pesquisa, extensão ou inovação”, afirma.
“Para as editoras universitárias o que importa é o retorno que gera um impacto para a comunidade acadêmica e para a sociedade e não necessariamente o lucro, já que toda a receita é reinvestida na produção de novos títulos e em reimpressões ou reedições”, acrescenta Susane Barros.
A escola baiana no samba carioca
A pesquisadora Lia Dias Laranjeira conta que ficou sabendo que o seu estudo seria uma das obras que subsidiaria a criação do enredo da Escola de Samba Unidos do Viradouro quando viu a sinopse do enredo do desfile publicada nas redes sociais da Escola niteroiense. “Minha pesquisa aparece sobretudo no início do desfile, na performance da batalha entre os reinos de Uidá e Aladá, que explica a origem do culto a Dangbé, mas também quando tratam das sacerdotisas da serpente”, declara Lia.
A preparação do desfile “Arroboboi, Dangbé” também contou com o apoio de outras obras, frutos de pesquisa acadêmica de três professores de universidades públicas da Bahia. Além dela, professora da Unilab (Campus Malês, São Francisco do Conde-BA), o carnavalesco Tarcísio Zanon usou como referência os livros de Luis Nicolau Parés, “A Formação do Candomblé: História e Ritual da Nação Jeje na Bahia” e “O Rei, o Pai e a Morte: a Religião Vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental” além da obra do professor baiano João Reis, “A Morte é uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX”.
Ver outras referências do desfile em: https://unidosdoviradouro.com.br/enredo/
Novas e importantes temáticas
Lia Laranjeira declara que tem observado, nos últimos anos, uma presença maior de temáticas relacionadas à história da África, da diáspora africana no Brasil e das práticas religiosas de matriz africana. Para ela os desfiles tem contribuído com a divulgação de figuras e manifestações culturais históricas de importância para o país, “mas também dos graves problemas que incidem sobre a população negra, como a questão da violência policial retratada pelo desfile da Vai-Vai neste ano”, lembra.
Ela continua: “Os desfiles chegam a um público amplo que acessa, muitas vezes pela primeira vez, por exemplo, a história do rap presente no desfile da Vai-Vai ou dos candomblés jejes na Bahia e de sua matriarca Ludovina Pessoa, contada pela Viradouro neste carnaval e tema de investigação do professor Luis Nicolau”
Ainda segundo a autora, a história indígena também esteve representada no carnaval deste ano no desfile da Salgueiro, que retratou a história dos Yanomami com base no livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, “A queda do céu”, e em pesquisas acadêmicas. “Esses desfiles evidenciam como a pesquisa científica pode dialogar com a sociedade de forma mais ampla e atrair um público que não está necessariamente na academia”, nota.
“O financiamento à pesquisa no país, por outro lado, resulta em publicações que tem sido usadas cada vez mais na produção dos desfiles. O carnaval, como uma festa historicamente política, tem proporcionado maior visibilidade à história de mulheres e homens negros no país e de suas expressões simbólicas e culturais, algo fundamental para o combate às diversas formas de racismo do país”, comenta a professora.
Quem é
Lia Dias Laranjeira é professora de “Lugares de Memória” e de “Artes africanas e afro-brasileiras na educação”, no Instituto de Humanidades e Letras da Unilab e está fazendo pós-doutorado em Antropologia na USP, associada ao Departamento de História da Universidade de Western Cape, na Cidade do Cabo, África do Sul. Sua pesquisa atual trata das artes de Moçambique em circulação pela África do Sul, nos anos 1980 e 1990, período em que acontecia uma guerra civil em Moçambique e do apartheid sul-africano. Essa pesquisa integra um projeto temático no qual participa como pesquisadora associada, coordenado pela professora Denise Dias Barros e com financiamento da Fapesp. Lia também integra o “Djumbai-Grupo de pesquisa em artes e patrimônio cultural africanos e afro-diaspóricos”, do qual foi uma das fundadoras.