A ausência ou a negatividade da presença do negro brasileiro na imprensa, rádio, cinema, televisão, livro didático e outras mídias norteiam as pesquisas do Etnomídia – Grupo de Estudos em Mídia e Etnicidades da Faculdade de Comunicação da UFBA (Facom), que comemorou 20 anos com o evento “A coisa tá preta na Facom”, em 21 de março, justamente o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU)*.
Ao longo de duas décadas, os projetos de pesquisa e produção de conhecimento crítico desenvolvidos pelo Etnomídia – estudos, reflexão e ampliação do debate sobre mídia e relações étnico-raciais – “ajudaram a formar protagonistas de ações que fortalecem a luta contra a discriminação racial na mídia”, afirmou o professor Fernando Conceição, fundador e coordenador do grupo.
Mesas de discussão, que revelaram as variadas abordagens do tema nas pesquisas realizadas pelo Etnomídia, preencheram o evento, saudado em sua abertura, no auditório da Facom, pelo reitor João Carlos Salles, pelo pró-reitor de Pesquisa e Inovação, Olival Freire Jr., pela pró-reitora de Ações Afirmativas e Assuntos Estudantis, Cássia Virgínia Maciel, e pela diretora da Faculdade, Suzana Barbosa, além do diretor da Assufba, sindicato dos técnico-administrativos, Antônio Bomfim.
Entre os palestrantes, estiveram os jornalistas Suzana Varjão, pesquisadora na área da comunicação e direitos humanos, Maíra Azevedo – a youtuber Tia Má -, Edson Cardoso, pesquisador e mestre em comunicação pela UnB, e Sueide Kinté, blogueira e ativista.
Violência crônica no Brasil e racismo, considerou Suzana Varjão, são dois temas intrinsecamente ligados, relação que identificou e trabalhou em suas pesquisas, explica, a partir de suas próprias experiências profissionais. “Não escolhi o tema do racismo, ele me escolheu”, disse, em estudos que apontam a forma natural e orgânica com que a mídia invisibiliza o negro na sociedade brasileira.
Suzana, que atuou em diferentes editorias dos jornais baianos, observou que esses meios acabam por colocar o negro em posições secundárias em determinadas editorias, como a policial, que recebem menos recursos para atuação e cobertura. Também em programas de televisão policialescos, os indivíduos são explorados e expostos, em clara violação às leis que protegem os direitos dos cidadãos. “Apesar do mapa da violência estar sempre exposto na mídia, e estar diretamente ligado à questão racial, essa nuance específica não é abordada. Os indivíduos que sofrem com a violência são tratados como dados estatísticos”, concluiu ela.
A despeito de existir há bastante tempo um debate qualificado sobre racismo nas redações de jornais, impulsionado pela atuação do Movimento Negro, nem sempre se dispunha de mecanismos de superação do racismo. Por isso, Varjão defende que é preciso uma mudança de perspectiva, recorrendo ao filósofo francês Michel Foucault para lembrar que é muito difícil mudança de perspectiva social sem mudança cultural.
Lembrando que “o racismo não descansa, a luta é diária e constante e que, mesmo sem ter espaço nas mídias tradicionais, o jornalista precisa aprender a utilizar as novas mídias para encontrar a sua forma de dizer o que precisa ser dito”, a jornalista e youtuber Maíra Azevedo destacou o pensamento crítico como ferramenta para abordar questões relevantes para combater o racismo. “Tia Má” baseou-se em sua experiência com a veiculação de vídeos curtos e rápidos, para abordar a questão da utilização dos meios alternativos de mídia para fazer jornalismo e falar ao negro da periferia de assuntos que não têm espaço na mídia dominante.
O debate sobre racismo “continua sendo uma atividade intramuros”, na visão do pesquisador Edson Cardoso, que analisa o contexto histórico e investiga as mudanças efetivas, nesses 20 anos. As pessoas são diretamente afetadas pela ausência do estado em questões como segurança, transporte coletivo, saúde. “O desinteresse em falar sobre parcela tão significativa da população não permite que se tenha uma visão mais ampla sobre os projetos políticos e sociais que são praticados”, afirma o pesquisador. Um exemplo, segundo Cardoso são os ambulantes que se aglomeram com suas caixas de isopor às margens do circuito do carnaval para vender bebidas e que são exclusivamente negros.
A negação do negro na sociedade brasileira já está presente nos textos do poeta e estadista José Bonifácio, quando da formatação da república declarando o negro um ser inferior não apenas em relação ao seu amo, mas também em relação ao homem branco, apontou Edson assegurando que esse discurso acaba por se naturalizar e atravessar os séculos. Em seus estudos, o pesquisador relata casos como o do diretor de cinema Cacá Diegues, que em sua biografia fala sobre a realização de trabalhos para um shopping center, no qual os representantes do empreendimento são enfáticos em pedir atores ao diretor e destacar que “Negro, não! Nem como figurante”. Para Edson essa negação, essa liberdade regulada do negro na sociedade brasileira, é a base essencial do processo de sua invisibilização.
A jornalista Sueide Kintê constata uma representação do negro na mídia brasileira sempre como “lúgubre, luxurioso ou lúdico”. Ela ressalta que as mídias sociais trouxeram uma liberdade maior de interação e deram amplitude a esse discurso em outro espectro. “Os espaços sociais na internet são importantes e devem ser utilizadas pelos negros para se organizar, discutir e levar adiante a luta contra o racismo. A internet acaba se tornando mais um capital para o enfrentamento, por ser um local livre e aberto, que possibilita não apenas debater, mas criar novas tecnologias inclusivas”, defendeu.
Entretanto, Sueide atenta para as ‘bolhas’ que são criadas nas redes, que têm o potencial de limitar a expansão dos diálogos e disseminação de discussões relevantes. Para ela encontrar uma forma de superar essas ‘bolhas’ passa a ser mais um desafio da luta contra o racismo na era da informação.
* A Organização das nações Unidas (ONU) instituiu a data de 21 de março como o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, em memória às vítimas do massacre de Sharpeville, África do Sul, ocorrido em 1960.
Fonte: Edgar Digital