As relações raciais na universidade e as contribuições das ações afirmativas para o enfrentamento do racismo no Brasil foram evidenciadas na mesa de debates do FSM 2018 realizada na quarta-feira, 15 de março, na Escola de Teatro da UFBA. O debate faz parte do programa intitulado "Pontos Críticos de Extensão", da Pró-Reitoria de Extensão da UFBA (Proext).
Segundo o professor Kabengele Munanga, da Universidade de São Paulo (USP), os estudantes negros e indígenas, que antes da política de cotas estavam fora da universidade, ainda enfrentam certa estranheza no ambiente acadêmico. Por isso a importância de se investir em estratégias de acolhimento e políticas de assistência, inclusive assistência psicológica, para assegurar sua a permanência nesse espaço que é seu por direito. As políticas de ação afirmativa com viés racial, com foco no sistema de cotas, foram implementadas por diversas universidades públicas estaduais e federais.
Nascido da República Democrática do Congo e naturalizado brasileiro, Munanga recordou que quando chegou à USP vindo da África, em 1975, tinha em mente o mito da democracia racial no país, com imagens do futebol e do carnaval. “Chequei aqui e vi que não era bem assim. Me dei conta de que as pessoas não têm formação teórica sobre o racismo. E essa desinformação continua. Esse vazio existe em nossa formação e não mudou mesmo com a política de cotas”.
“Muitos dos estudantes que acessam o sistema de cotas não têm conhecimento da história de lutas necessária para que esses benefícios fossem conquistados. É preciso também sensibilizar os estudantes que já estão na universidade para a convivência com a diversidade”, disse o professor, destacando a importância dos movimentos negros.
Diante do aumento expressivo de fraudes no sistema de cotas em muitas universidades públicas, ele afirmou concordar com a adoção de mecanismos de controle – tendo como base muito mais questões fenotípicas interpretadas em cada contexto. “Chegou um momento em que apenas a auto declaração não basta. É preciso mecanismos de controle, até mesmo para assegurar que a política está atingindo de fato aos seus destinatários”.
A pró-reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da UFBA, Cássia Virgínia Maciel, apontou para a necessidade de aprofundamento das ações afirmativas para além do acesso à universidade através do sistema de cotas – que hoje são uma realidade na graduação e pós-graduação. “O desafio agora é a permanência desses estudantes”, afirmou a pró-reitora, que observa a emergência de novas demandas relacionadas às questões de gênero, raça, classe social, acessibilidade, etc. “A universidade precisa dessa diversidade, de novos e diferentes protagonistas”, avalia.
Sobre a política de cotas, Cássia afirmou que a posição da UFBA é o fortalecimento da autodeclaração dos estudantes juntamente com a aferição presencial que passou a ser adotada por muitas universidades como forma de combater as fraudes e preservar tão importante política reparatória no âmbito dos direitos humanos.
Para a diretora presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), Elisa Nascimento, a fraude na autodeclaração é um ponto crítico para as universidades públicas e uma consequência da forma do racismo brasileiro, que sempre deixou a cargo de uma elite branca a definição acerca das minorias sociais, com poder para definir quem é negro e quem não é.
“Durante muito tempo se dizia que o Brasil é um país miscigenado, que é difícil saber quem é negro ou branco. Mas para saber isso basta perguntar à polícia ou aos zeladores dos prédios”, disse Elisa, que avalia a questão racial como uma questão estruturante, não apenas para a sociedade brasileira, mas para as relações humanas em todo o mundo.
Em sua fala, fez críticas ao artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, no final do ano passado, assinado por Antônio Risério, que aposta no mito de miscigenação no Brasil para criticar o movimento negro e defender a ideia de que a miscigenação e a boa convivência seriam provas de que não existe racismo no país. Como resposta, ressaltou que a miscigenação teve origem, entre outros fatores, a partir da violência contra as mulheres negras que eram objetos de prazer sexual de senhores brancos. E apontou também a política brasileira expressa na constituição federal de 1945, que, segundo o seu entendimento, pretendia embranquecer o país com uma política de incentivo à migração para o país de trabalhadores europeus, de origem caucasiana.
Elisa falou sobre as dificuldades para implementação das ações afirmativas na universidade, que foram resultado de uma longa história de lutas do movimento negro que teve representantes como Abdias do Nascimento e seu trabalho a frentes do Teatro Experimental do Negro. Em referência ao livro “Genocídio do negro brasileiro”, publicado por Nascimento em 1978, denunciou que “o genocídio continua ocorrendo e estamos vendo o mesmo quadro de 40 anos atrás”.
O antropólogo Ordep Serra, professor aposentado da UFBA, revelou ter ficado estarrecido com a o artigo de Antônio Risério, que promoveu “um ataque sórdido” a Abdias do Nascimento, escritor, poeta, dramaturgo, artista plástico, deputado federal e senador paulista e ativista do movimento negro no século XX, que denunciava a utilização ideológica da mestiçagem para negar o racismo e foi apontado como um ícone da racialização no Brasil, polarizando o país entre brancos e negros. “Óbvio que ele nunca se opôs à mestiçagem em si. Colocá-lo como inimigo da mestiçagem brasileira é uma estupidez. Essa argumentação é falaciosa e de grande desonestidade intelectual”.
“Vivemos um racismo hipócrita, que tem como sua principal arma a negação da existência do racismo. No entanto, veja a composição das populações mais pobres e sem acesso a direitos básicos, daqueles que estão atirados nas prisões e são vítimas da violência policial”, denunciou.
“Esse país não quer combater o racismo e continua escravista”, disse o professor para lembrar a recente medida adotada pelo governo federal na tentativa de dificultar a fiscalização do trabalho escravo. Ele também falou sobre a retirada de direitos dos trabalhadores promovida pelo atual governo, que está a serviço do capital financeiro, impondo retrocessos à sociedade brasileira. “Tudo o que é política de inclusão está sendo revisto. Que a gente não deixe de lutar contra o racismo e em defesa da preservação de cotas”, disse
“A Bahia está sendo branqueada à bala. Jovens negros e negras estão sendo dizimados. Vamos dizer que esse não é um país racista?”, questionou. Para finalizar, ressaltou a importância da atuação dos movimentos negros, “sem os quais estaríamos em uma situação muito pior”.