A pé, de buggie ou sobrevoando, a equipe do Laboratório de Estudos Costeiros do Instituto de Geociências já percorreu os cerca de 1500 quilômetros de litoral desde o extremo sul baiano até a fronteira de Alagoas com Pernambuco, e mais a costa da Paraíba. Quem garante é o professor José Maria Landim Dominguez, que desde 2000 vem coordenando uma série de pesquisas geológicas e geofísicas, realizadas por aproximadamente duas dezenas de pesquisadores – entre doutorandos, mestrandos e graduandos – que já lhe passaram pelas mãos no laboratório.
Entre os muitos achados dessa longa jornada pelas areias nordestinas, talvez se possa peneirar uma aparente obviedade, que vale para toda a costa: a faixa litorânea está em constante movimento, encolhendo em algumas áreas, aumentando em outras, relativamente estável n´outras tantas, mas jamais parada – a ciência, nesse caso, ecoa o verso de Lulu Santos que diz que nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. O professor Landim prefere citar Heráclito, aquele filósofo da Grécia Antiga para quem o mesmo homem nunca se banhará duas vezes no mesmo rio, porque, com o passar do tempo, nem o rio nem o homem serão os mesmos: “Tudo flui, tudo está em mudança constante”.
Por outro lado, os estudos conduzidos pelo professor Landim felizmente não confirmam as perspectivas mais alarmistas, que, nos anos 1980, davam conta de que 70% das linhas de costa do mundo estariam ameaçadas pela erosão. No caso baiano, pode-se dizer que apenas 26% da costa tendem a “encolher”; em Sergipe, 21%; e na Paraíba, 42%. Isso com a autoridade de quem analisou imagens (de satélite e fotográficas) do passado e, ao percorrer toda a costa, coletou amostras da areia e preencheu fichas de observação de características geológicas (como tamanho dos grãos, declividade do terreno, tipos de onda, características dos colchões rochosos e manguezais) mais ou menos a cada 1 quilômetro percorrido.
Esses quase 20 anos de trabalho já resultaram em pelo menos oito livros, além de vários artigos, teses, dissertações e trabalhos de conclusão de graduação. O mais acessível ao público leigo talvez seja o Atlas de Erosão e Progradação do Litoral Brasileiro, organizado por Dieter Muehe e editado em 2006 pelo Ministério do Meio Ambiente (uma versão atualizada está no prelo), para o qual Landim contribuiu como coautor dos capítulos sobre Bahia, Sergipe e Paraíba. Os demais são preciosas páginas em uma linguagem mais técnica, informando de maneira mais aprofundada as propriedades geológicas e geofísicas do litoral baiano – um material voltado ao planejamento de gestores, empreendedores e ambientalistas, e acessível, em geral, à sociedade.
“Quem vive ou constrói em certas regiões de beira de praia tem que se preparar para enfrentar a erosão da costa. É mais ou menos a mesma situação de quem mora numa encosta, ou numa região vulcânica. Tem que conviver com o fenômeno natural”, resume, sem fatalismo, o professor Landim. Isso porque, embora haja variáveis antrópicas (resultado da ação humana) que implicam nos processos de erosão da costa, a maior parte das alterações de feição das praias são determinadas fundamentalmente, diz ele, pelos ciclos naturais de movimento dos ventos (que impactam no movimento das ondas), do regime das chuvas (que impactam na vazão dos rios), e pelo aumento, lento mas progressivo, do nível dos oceanos, entre outros fatores.
Os estudos coordenados pelo professor Landim demonstram que a maior parte dos sedimentos que formam a faixa de areia das praias baianas – de Salvador até o litoral sul baiano – são trazidos pelos vários rios que desaguam ao longo do litoral, principalmente o Jequitinhonha (vazão líquida de 464 mil litros por segundo) e o de Contas (100 mil litros por segundo). Por isso, alterações nas vazões dos rios têm, em geral, grande potencial de afetar o formato da costa. “Se é o rio que traz o sedimento, quando, por algum motivo, ele traz menos, acaba faltando areia na praia, e ela tende a encolher”.
Entre as situações de variação da feição da costa por causas naturais, o professor Landim lembra os casos emblemáticos das restingas de Alcobaça e de Prado, no litoral sul, que apresentam uma intensa dinâmica, ora alargando, ora alagando o continente; e da foz do rio Jequitinhonha, cujo desenho das pequenas “ilhas” de seu delta muda com rapidez, por conta das variações no volume de areia trazida pelo rio.
Mas há também lugares em que a alteração da linha da costa pode ser claramente ligada a construções feitas sem o devido planejamento. É o caso da região portuária de Ilhéus. “No porto de Ilhéus, construído nos anos 1960, dá para ver que o porto tornou-se uma barreira para o movimento da areia ao longo da linha de costa”, diz o professor, apontando imagens que mostram uma faixa de 400 metros de areia acumulada antes do quebra-mar do porto. É justamente essa areia que falta do outro lado dessa barreira artificial, onde o mar vem ano a ano “comendo” o continente, obrigando à construção de muros ou aterros – obras em geral caras e que, com o tempo, acabam perdendo a eficácia. Nesse caso, a ciência contraria aquela canção de Fágner que diz que quem é rico, mora na praia – se não tomar cuidado, mesmo quem mora na praia pode acabar ficando feito quem trabalha: sem ter onde morar.
Mapeamento, planejamento, prevenção
Mapear o comportamento da linha de costa em locais como esses, onde ela apresenta grade variabilidade, pode ajudar gestores, empreendedores e comunidades a prever situações de risco. Segundo o professor Landim, não há legislação que fixe normas adequadas para a construção em áreas costeiras, isto é, com base nos estudos geológicos mais recentes. “Nos terrenos de marinha, de domínio da União, que consistem de uma faixa de 33 metros contados a partir da linha de preamar máxima, não são permitidas construções permanentes. Já a Constituição do Estado da Bahia estabeleceu uma faixa semelhante, de não ocupação, com largura de 60 metros, também contados à partir da linha de preamar, para garantir o livre acesso da população à praia. Mas isso nem sempre é suficiente”, explica. A linha de preamar corresponde a onde a água do mar alcança, definida pela média de todas as marés do ano.
Os estudos que geraram os capítulos do atlas da erosão costeira sobre Bahia, Sergipe e Paraíba também deram origem a artigos sobre esses três estados (e mais o estado de Alagoas) para a coletânea “Brazil Beach Systems”, organizada por Anton D. Short, da Universidade de Sidney (Austrália) e Antonio Klein (da Universidade Federal de Santa Catarina), e publicada em inglês pela editora britânica Springer.
As pesquisas resultaram ainda em uma série de livros sobre as características geológicas, potenciais de uso e de recursos minerais do litoral baiano, publicada entre os anos de 2008 e 2011 pela Companhia Baiana de Pesquisa Mineral e pelo Governo do Estado. “É um tipo de trabalho que, pelo custo e pelo tipo de interesse científico, nenhuma empresa ou órgão público faria. É função da universidade produzir e disponibilizar esse conhecimento”, avalia Landim. Esse conjunto de trabalhos passou a fazer parte das atividades do instituto nacional de ciência e tecnologia inctAmbTropic (Ambientes Marinhos Tropicais: heterogeneidade espaço-temporal e respostas às mudanças climáticas), financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnologico), coordenado pelo professor Landim, em articulação com pesquisadores de diversos estados.
Outro trabalho importante que resultou desse conjunto de pesquisas foi o Atlas de Sensibilidade ao Óleo das Bacias Marítimas da Bahia, publicado pela gerência de segurança química do Ministério do Meio Ambiente em 2012, que mostra que a maior parte do litoral baiano corre sério risco de contaminação em casos de vazamento de óleo de embarcações.
No atlas, a linha de costa baiana aparece dividida em quatro setores: a costa do litoral Norte (ao norte da Bahia de Todos os Santos), a costa dos riftes mesozóicos (entre a Bahia de Todos os Santos e Ilhéus), a costa deltaica do Jequitinhonha-Pardo (entre Ilhéus e Santa Cruz Cabrália) e a costa faminta do sul da Bahia (até a fronteira com o Espírito Santo). Nos trechos a sul de Salvador, os percentuais de áreas que correm risco máximo de contaminação (conforme o Índice de Sensibilidade do Litoral, o ISL, uma escala internacional de 0 a 10) chegam a 58,7% (costa faminta do sul da Bahia), 64,8% (costa dos riftes mesozóicos) e 73,49% (costa deltaica do Jequitinhonha-Pardo). Na costa do litoral norte, considerado menos sensível, apenas 15%,55% da área atinge o ISL 10 (a maior parte, 39,51%, tem ISL 4).
A sensibilidade ao óleo depende de diversos fatores. “Quanto mais fina é a areia, mais baixa a permeabilidade ao óleo. Quando a areia é mais grossa, a permeabilidade é maior, e mesmo o tráfego de veículos e pessoas na área atingida fica mais difícil”, explica o professor. Outros aspectos, como o tamanho e formato das rochas, flora e fauna típicas e maior ou menor presença de formações como manguezais ou recifes de corais são levados em conta na definição do ISL.
Cidade sobre a praia
Nas andanças pelo litoral, o professor Landim chegou até mesmo a ver aquele verso de Sá e Guarabira, que diz que o sertão vai virar mar, acontecer diante de seus olhos: ele viu o povoado de Cabeço, na foz do rio São Francisco, desaparecer do mapa em 1998. A principal explicação para isso é justamente a alteração, para menos, da quantidade de sedimentos trazidos pelo rio, pelo efeito combinado de diminuição natural das chuvas e regulação das vazões pelas grandes barragens ao longo do Velho Chico, o que fez a linha de costa recuar ao longo das últimas décadas, resultando na destruição da pequena vila.
Por outro motivo – o aumento contínuo do nível dos oceanos, ligado ao fenômeno do aquecimento global –, Landim alerta que algumas praias da orla da cidade de Salvador (que já tem uma faixa de areia muito estreita) podem vir a ser, no futuro, afetadas. “Olhe a região do porto e farol da Barra, por exemplo: ali, a avenida foi construída sobre a praia”, observa. Cotejando imagens atuais e fotos do princípio do século 20, o professor demonstra que a faixa de areia vem diminuindo, e que isso, no futuro, obrigará o poder público a realizar grandes obras de recomposição das praias urbanas da cidade.
Seriam necessárias, nesse caso, obras de dragagem de sedimentos de áreas submersas para recompor as praias. Além de cara, essa operação é ambientalmente impactante, pois a retirada da areia do fundo do mar pode afetar ecossistemas bentônicos (formados por algas e espécies animais que vivem numa fina camada imediatamente acima do solo marinho). Os estudos do livro “A Plataforma Continental do Município de Salvador”, publicado em 2011 também pela CBPM e Governo do Estado, mostram que a principal fonte de areia conhecida, cuja extração afetaria menos os ecossistemas marinhos, é o banco de Santo Antônio, um grande banco de areia nos arredores do forte de Santo Antônio, na entrada da Bahia de Todos os Santos.
Com a subida do nível do mar, talvez, no futuro, parte de Salvador venha a ser alguma cidade submersa, como o Rio da fantasia futurista de Chico Buarque, a ser visitada por escafandristas que virão explorar sua casa, seu quarto, suas coisas. Mas nisso vamos deixar para pensar depois, que é coisa para um futuro ainda meio distante – pois então, que ninguém se afobe não, que nada é para já.
Fonte: EdgarDigital