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Todos os riscos e características do atual surto de febre amarela em debate na UFBA

Evento foi realizado na última sexta-feira, 7 de abril

O atual surto de febre amarela silvestre no país é o maior das últimas três décadas, em termos da circulação do vírus, mas não quanto à extensão geográfica e à incidência de casos, a par de um índice de letalidade abaixo das médias históricas. A mais importante e urgente medida de saúde pública neste momento, concordam autoridades sanitárias e epidemiologistas, ainda que possam divergir quanto a métodos, instrumentos e suas dosagens, é cercar e controlar a doença onde ela se apresente, principalmente com a vacinação. Assim, talvez se possa impedir que a versão silvestre, transmitida no Brasil pelos mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, evolua para a forma urbana, cujo vetor é o onipresente Aedes aegypti.

Foram essas as principais linhas do debate com quatro dos mais respeitados pesquisadores brasileiros da febre amarela, durante o seminário “Febre Amarela: Situação Atual e Dificuldades de Controle”, promovido pela Reitoria da UFBA em conjunto com o Instituto de Saúde Coletiva (ISC) e Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), com a participação da Fiocruz, na manhã da última sexta-feira, 7 de abril, no auditório do ISC.

Os epidemiologistas Eduardo Hage, do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags/Unasul), Pedro Luis Tauil, da Universidade de Brasília (UnB), Pedro Fernando Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas, e Reinaldo de Menezes Martins, da Fundação Oswaldo Cruz-Biomanguinhos, apresentaram ali em detalhes, para um auditório lotado por pesquisadores, médicos e estudantes, suas avaliações e, sobretudo, questões em aberto e interrogações a respeito da evolução deste surto de febre amarela.

Antes, na mesa de abertura do evento, integrada pelas professoras Isabela Cardoso, diretora do ISC, e Glória Teixeira, ex-diretora do ISC e representante da Abrasco, mais Camila Indiani de Oliveira,, representante da Fiocruz-Ba, o reitor João Carlos Salles disse em sua saudação aos presentes que, junto com o pró-reitor de Planejamento da UFBA e ex-diretor do ISC, Eduardo Mota, tinha pensado em realizar o debate sobre febre amarela como aula inaugural do próximo semestre letivo, em maio. “Mas a gravidade do assunto nos obrigou a antecipá-lo, e estamos encerrando o semestre com este seminário. Essa é uma demonstração do compromisso social da Universidade no enfrentamento dessa doença”, afirmou. O reitor lembrou que o tempo da academia é distinto do tempo de governo, dado a ser levado em conta pela universidade ao se aprofundar nas pesquisas, estudos e diagnósticos de um grave problema de saúde pública.

A mesma doença, transmissores distintos

A epidemiologista Glória Teixeira, antes de passar a palavra aos palestrantes convidados, observou que “este não é um surto cíclico como temos visto durante muitas décadas, a intervalos de 5 a 7 anos. É diferente”. Seria importante a população compreender, acrecentou, que os macacos acometidos pela febre amarela são aliados dos humanos, ao sinalizarem para áreas que carecem de atenção imediata, e desabafou ao se referir aos quatro animais encontrados mortos há poucos dias no bairro de Brotas: “Não esperávamos ter macacos urbanos infectados em Salvador, embora algo semelhante tenha ocorrido em 2009 na Universidade Federal de Goiás (UFG) e no Parque Água Mineral, em Brasília”.

Glória Teixeira, como outros colegas fariam em seguida, lembrou que desde 1942 o Brasil não tem surto de febre amarela urbana. Manter de pé essa afirmação é agora uma questão fundamental para epidemiologistas, agentes de saúde pública e, em especial, a população. Daí, tanto as afirmações reiteradas de que o surto por ora é silvestre quanto as manifestações, em círculos menores, científicos, da preocupação intensa com os riscos de uma transição para a versão urbana.

Na verdade, a febre amarela silvestre e a febre amarela urbana são exatamente a mesma doença quanto ao vírus que a causa e à sintomatologia. “Diferem apenas quanto aos vetores de transmissão e hospedeiros vertebrados”, disse a certa altura Pedro Tauil, por muitos anos coordenador do programa nacional de dengue e febre amarela no Ministério da Saúde. E justamente essa pequena distinção faz toda a diferença. Por quê?

Os tímidos mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, responsáveis pela transmissão silvestrevivem nas copas das árvores em áreas de matas e florestas, têm hábitos diurnos, estão mais ativos das 9 às 15 horas, e picam preferencialmente macacos que vivem no mesmo habitat. Mas podem picar também os humanos que entram nas áreas onde se concentram. “Por atividade de trabalho, turismo, lazer, as pessoas vão às matas, e assim começa a transmissão”, disse Pedro Vasconcelos. E vale notar que, no atual surto, as principais vítimas, nada menos que 87% dos 574 casos registrados até 4 de abril, são homens: adolescentes e adultos jovens, sobretudo trabalhadores, e especialmente trabalhadores rurais. Esse é um dado importante para definir estratégias de vacinação.

Já os aguerridos e muito conhecidos Aedes estão por toda a parte nas áreas urbanas, inclusive dentro de habitações, têm também hábitos diurnos, com maior atividade ao amanhecer e ao entardecer. Ora, o real temor que se tem hoje é que mosquitos Aedes, ao picarem doentes de febre amarela silvestre que se encontrem em áreas urbanas, sejam infectados pelo arbovírus e, numa situação sem cobertura vacinal suficiente e segura, comecem a transmiti-lo de forma descontrolada e ameaçadora. Em outras palavras, o temor é que depois de “saltar a janela” da Amazônia para outras regiões do país nos anos 1990, como disse Eduardo Hage, a febre amarela pule nova janela, agora com o concurso do Aedes, do interior para as áreas urbanas do litoral, onde se concentram 100 milhões de brasileiros.

A “radiografia” da febre amarela apresentada por Eduardo Hage, pesquisador formado no ISC, que já atuou no Ministério da Saúde, permite deduzir que o atual surto teve início na região norte do estado de São Paulo, próximo à fronteira com Minas Gerais, pois a área registrou casos de febre amarela em humanos em março, julho e agosto de 2016.

A linha do tempo mostra que, logo a seguir, a partir de dezembro, a doença se espalhou para o interior de Minas Gerais e para o Espírito Santo – onde se tem registrado a maior parte dos casos –, chegando posteriormente ao Rio de Janeiro. Atualmente, 20 estados têm casos notificados e estão em estado de alerta. Na Bahia, mais de uma dezena de municípios registra notificações, e a morte dos macacos em área urbana de Salvador levou a Secretaria Estadual de Saúde a anunciar a distribuição de 2 milhões de doses da vacina.

Hage mostrou que até o final da década de 1990, os casos da febre amarela no Brasil estavam praticamente confinados a áreas de floresta da Amazônia, nos estados do Amazonas e Pará. A partir dos anos 2000, casos da doença começaram a ser registrados em Goiás, possivelmente em decorrência do grande afluxo de turistas para a região de Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, movidos pela crença num suposto “fim do mundo” na virada do milênio, entre outras hipóteses. Em seguida, São Paulo, Minas Gerais, principalmente Divinópolis, onde um grande surto foi registrado, oeste da Bahia e região sul do país entrariam nesse mapa epidemiológico. Em 2008 e 2009, a febre amarela alcançou os vizinhos Argentina e Paraguai – este último com registros de epidemia em áreas urbanas acompanhadas por Pedro Vasconcelos.

“A febre amarela continua se movendo”, disse Hage, “ou, parafraseando minha colega Zoraide Guerra, ‘pulou a janela'”. Para ele, embora a letalidade da doença no surto atual, de 32,5%, seja um pouco menor que a média de outros momentos, o alto número absoluto de casos e de mortes é preocupante. De janeiro a 4 de abril foram confirmados 574 casos em todo o pais, com 187 mortes. Isso representa quase o dobro do que se registrou de 2000 a 2012, ou seja, 326 casos confirmados e 156 mortes.

“O fato é que não conhecemos ainda a magnitude do atual surto”, reconheceu Pedro Tauil, que manifestou uma esperança tímida de que, como em outras vezes, a partir de agora, passado o verão, o surto perca força. “O ideal seria que cada caso confirmado fosse isolado para evitar a contaminação do Aedes”, observou.

Tauil lembrou que 20 estados já estão entre as áreas de recomendação para vacinação, afirmou que se houver uma urbanização da doença não há vacina no mundo capaz de dar conta do problema que o Brasil enfrentará (ver abaixo tabela de produção de vacinas) e apresentou os cenários otimista e pessimista para a evolução do surto, com as razões que os especialistas apresentam para um e outro.

Com frequência assintomática, às vezes mortal

Doença infeciosa aguda febril, que para a maioria dos infectados decorre sem sintomas ou com sintomas leves, em mais ou menos 15% dos casos a febre amarela evolui para um quadro grave, e desses, 50% resultam em óbito. Tal quadro é marcado por insuficiência renal, hepática, às vezes cardíaca, “o que mostra o viscerotropismo do vírus”, disse Pedro Vasconcelos, responsável, em sua produtiva vida de pesquisador, como bem lembrou Glória Teixeira, pela identificação de mais de 100 novos arbovírus. Numa tradução livre, digamos que viscerotropismo é um certo gosto acentuado do vírus pelas vísceras, em vez de ele se restringir à corrente sanguínea.

Vasconcelos lembrou no debate na UFBA que o arbovírus causador da febre amarela, que só ocorre nas Américas e na África, chegou ao Brasil há 250 anos, no tráfico de escravos. “Estudos genéticos identificaram duas linhagens nas Américas e cinco na África”, disse ele, antes de discorrer sobre os métodos diagnósticos, os danos produzidos no corpo pelas formas mais graves da doença, o peso do desmatamento na disseminação da febre amarela entre os macacos e o papel dos viajantes em sua transmissão.

As mortes ocorrem quando não se consegue reverter as insuficiências renais, hepáticas ou cardíacas. E embora se suspeite que a evolução da febre amarela para essas formas graves, segundo Vasconcelos, “resulte de fragilidade genética”, a rigor não se sabe o que leva de um ponto a outro.

Portanto, não há como traçar estratégias de vacinação baseadas num conhecimento inexistente de quem terá a forma branda e quem será vítima de alguma forma grave da febre amarela. Em outras palavras, não se sabe quais são os maiores grupos de risco. Quando se fala em estatísticas da febre amarela silvestre, parece óbvio que os homens jovens sejam os primeiros vacinados já que compõem a maioria das notificações da doença. Mas isso não é tão simples, em especial quando se mira riscos de urbanização da doença.

Não é de estranhar, assim, que a vacinação em massa não seja um consenso entre especialistas, ainda que todos os debatedores tenham defendido a vacina e seu uso em todas as áreas afetadas, talvez com uma redução da intensidade de sua potência para aumentar sua segurança, conforme a proposta de Reinaldo de Menezes Martins. “Testes em cobaias com doses até 60% menos intensas protegeram por até um ano”, disse ele, provocando protestos na plateia na base de “mas isso é muito pouco tempo!”.

A vacina tradicional, tal como vem sendo produzida para garantir proteção por até 10 anos registra um evento grave, ou seja, efeito colateral que pode levar à morte, a cada 3 milhões de doses aplicadas, em situações normais, e um evento grave em cada 1,5 milhão de doses em tempos de surto. Há dúvida sobre se tais eventos decorrem de uma replicação viral exagerada, de uma resposta imune exacerbada, de uma combinação das duas coisas ou de outros fatores genéticos.

De todo modo, Menezes Martins mostrou que, nos estudos de fatores de risco para os eventos graves, se tem definido como grupos mais vulneráveis os homens idosos, as mulheres entre 19 e 34 anos, os portadores de doenças autoimune, lúpus em especial, pacientes que retiram o timo e por isso desenvolveram doença autoimune, e crianças com menos e 11 anos.

A vacinação, até então, atingia menos de 50% das áreas recomendadas por epidemiologistas ao Ministério da Saúde desde 2008. Mesmo assim, entre 2000 e 2017, foram aplicadas 137,5 milhões de doses.

Embora o Brasil seja o maior produtor da vacina, com o Instituto Biomanguinhos, no Rio de Janeiro à frente, a capacidade de fabricação tem decrescido e não seria possível produzir vacinas em quantidade suficiente para imunizar toda a população, no caso de um surto urbano da febre anarela. A principal saída seria a inclusão da vacina contra a febre amarela nas campanhas de vacinação infantil, segundo Pedro Tauil. Mas já não há consenso acerca do tempo de imunização da vacina: “Até ontem, a orientação era de que tinha que ser plicada de 10 em 10 anos, hoje, já mudou, dizem que basta uma dose só”, alertou.

Se Tauil mostrou entusiasmo em relação a outras abordagens para o futuro, como novas técnicas de combate ao Aedes aegypti, entre as quais considera a mais alvissareira a inoculação da bactéria Wolbachia no mosquito, com impacto epidemiológico, na medida em que barra a transmissão do vírus, e impacto entomológico, porque em apenas três semanas substituiu em testes 80% dos indivíduos de uma população de Aedes pelos mosquitos geneticamente modificados, Menezes Martins lança uma interrogação sobre os benefícios de uma vacina eficaz contra dengue no combate da febre amarela, Ela protegeria parcialmente contra essa doença e contra eventos adversos graves da vacinação, comentou, baseado em uma série de experimentos que mostram efeitos cruzados entre os dois problemas. Ele joga algumas fichas também num marcador biológico que desenvolve com colegas da Universidade Rockfeller e de Biomanguinhos para identificar previamente pessoas suscetíveis a apesentar reações graves à vacina.

Por ora, contudo, o que se tem é que mudanças climáticas, desmatamento, novas linhagens genéticas de mosquitos e confinamento de populações de primatas não-humanos (macacos) são as principais hipóteses para ajudar a entender a expansão da doença. E para contê-la, o que há de efetivo é mesmo a vacina da febre amarela, junto com a atenção redobrada ao controle do Aedes.

Fonte: EdgarDigital.