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Herança africana e a tentativa de enxergar o mundo com seus próprios olhos

Racismo e produção de saberes foram temas de debate

Uhuru! UHURU!!! A multidão de jovens negros com camisas pretas responde à saudação com os punhos fechados erguidos para o alto, ecoando a palavra que significa liberdade, em swahili (idioma africano). Era a entrada triunfal da militância do “Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta”, campanha organizada pelo Quilombo Xis, entidade do movimento negro que prima pela afrocentricidade em seus posicionamentos e ações.

 Assim começou a mesa “Diversidade, racismo e produção de saberes”, realizada na manhã de sexta-feira no Congresso da UFBA, tendo como principal convidado o professor Molefi Kete Asante, professor do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Temple (EUA) e presidente do Instituto de Estudos Afrocêntricos que leva seu nome. A atividade foi coordenada por Gabriel Swahili de Almeida, da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE), e prosseguiu com uma fala da pró-reitora, Cássia Maciel, que tratou de ações afirmativas na universidade e afirmou ser necessário repensar a produção de conhecimento, questionando “quem está produzindo o que e para quem”.

O debate esquentou com a intervenção da médica Andreia Beatriz, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), militante do Reaja e do Quilombo Xis. Ela celebrou a conquista que foi a realização da mesa, confessando que “quem é preto e tem vergonha na cara sabe a dificuldade de estar em um espaço como esse”, e afirmando que seu discurso traz um “desconforto para as pessoas brancas em seus espaços de privilégio e zonas de conforto”. Falou da importância de resgatar um princípio fundamental africano que é a coletividade, e confessou a dor e o ódio que a comunidade negra carrega nas costas e que a impulsiona para a luta.

Tratou também das atividades de base do movimento, que trabalha com a Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas do Estado da Bahia e Núcleos de Familiares de Vítimas do Estado Racista Brasileiro. Em seu entendimento, o “preso comum” é um “preso político”, uma vez que a maior parte dos encarcerados tem melanina acentuada, tratando-se de “irmãos e irmãs sequestrados pela continuidade do processo de escravização”, com “vidas moídas, destruídas pelo sistema prisional”.

Traçou ainda um breve histórico da Polícia Militar na Bahia, que teria sido criada em 1825/1826 para destruir o Quilombo do Urubu, liderado por uma mulher preta, a Negra Zeferina, estabelecendo um paralelo com a Chacina do Cabula, ocorrida em 06/02/2015, quando 12 jovens negros entre 15 e 27 anos foram encurralados, rendidos e mortos pela PM com cerca de 70 tiros. Os policiais envolvidos foram absolvidos no mesmo mês, mas, após denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o caso pode ser levado à apuração pela Justiça Federal. “Ali se eliminou uma geração de cada família”, denunciou a médica, afirmando que a política de segurança pública promove um verdadeiro “genocídio do povo negro”, assassinando jovens de periferia de forma constante.

Andreia Beatriz falou ainda da herança nefasta de Nina Rodrigues, que foi professor da Faculdade de Medicina da Bahia, precursora da UFBA. Após tratar das origens escravocratas da sua família no Maranhão, falou das suas teorias racialistas (e racistas) e de como o pensamento lombrosiano “continua servindo de inspiração para atuação das nossas polícias”. Psiquiatra italiano, Cesare Lombroso acreditava ser possível identificar uma predisposição inata ao crime de acordo com características físicas e raciais. A professora falou ainda da triste ironia de o Instituto Médico Legal carregar o nome de Nina Rodrigues. Surgido “para abrigar indígenas, negros e indigentes, nele a presença dos corpos negros continua naturalizada e banalizada”. Andreia encerrou sua intervenção divulgando o jornal Assata Shakur, vendido no auditório, periódico que homenageia com seu nome a militante do Partido dos Panteras Negras que foi perseguida nos EUA e encontra-se refugiada em Cuba há mais de três décadas.

 

Afrocentricidade como uma alternativa ao eurocentrismo

A fala mais esperada do dia era a do professor Molefi Kete Asante. Referência internacional na área, o pesquisador publicou mais de 70 livros e 400 artigos, criando uma escola de pensamento que tem influenciado os campos da sociologia, comunicação intercultural, teoria crítica, ciência política, história africana e trabalho social. Ele saudou os Orixás e a memória de Zumbi, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez. Elaborou uma análise de conjuntura sobre os Estados Unidos, afirmando que “a supremacia branca sente que está perdendo poder; eles estão certos e vão continuar perdendo. Nós aumentamos nossa população enquanto eles diminuem, e aos poucos estamos conseguindo acumular poder político e econômico”. Avançou falando da necessidade de “criar um partido político voltado exclusivamente para as questões do povo negro”.

Passou então a falar sobre a estrutura de conhecimento no mudo ocidental e o papel dos africanos na civilização. Segundo sua perspectiva, a diversidade de que tanto se fala deve ser não só de pessoas mas de ideias, e criticou setores do multiculturalismo por ajudar a manter uma “hegemonia branca” no conhecimento, trazendo um “arcabouço teórico branco” para tratar de outros povos e culturas. Sublinhou a necessidade de construção de termos e conceitos mais precisos, exemplificando que deveríamos falar de tráfico europeu de escravos, não tráfico de escravos africanos, ou tráfico transatlântico. “O oceano atlântico nunca fez nada contra as pessoas negras”, brincou, arrancando risadas da plateia, e complementou em seguida: “Não houve escravos africanos, mas pessoas africanas escravizadas e trazidas para o Brasil”. Prosseguiu afirmando que “não nos ensinaram a verdade sobre a nossa história”.

O pesquisador traçou um breve histórico do afrocentrismo como um paradigma na produção acadêmica a partir dos anos 1980, como “uma critica à dominação econômica e cultural e um confronto à hegemonia eurocêntrica, suas estruturas e epistemologias opressoras”. Falou do princípio da humanidade, da espiritualidade, da ciência e da civilização, que teriam surgido entre os povos negros do Vale do Rio Nilo, principalmente os reinos de Kemet e Núbia, no Antigo Egito. Criticou de forma profunda o eurocentrismo acadêmico, questionando: “2000 anos antes de Cristo os negros já haviam erguido as pirâmides. Por que não começam os estudos na universidade a partir dessa história? Porque o currículo é branco e racista. Na universidade nunca aprendi nada sobre Nigéria ou Sudão, mas me tornei especialista no continente europeu”. Lembrou que a primeira voz inteligente da Grécia foi Homero, 800 a.C., mas Imhotep, o construtor da primeira pirâmide, em Sacara, viveu 2 mil anos antes de Homero, tendo sido considerado o primeiro arquiteto, engenheiro e médico da história, em 2800 a.C. Afirmou que a fonte do conhecimento da Grécia foi o Antigo Egito, fato que seria corroborado pelo próprio historiador grego Heródoto. De acordo com o professor Molefi houve uma clara falsificação da história e da ciência para garantir a supremacia branca, criando toda uma falsa estrutura de conhecimento. “A educação nas Américas teve como objetivo garantir o ensino da superioridade europeia para que indígenas e africanos nunca pudessem estudar sua própria produção de conhecimento”, explicou o acadêmico, e alertou: Não deixem que os racistas brancos controlem suas mentes”.

Molefi Asante concluiu refirmando a perspectiva da Afrocentricidade e seus valores de cooperação e coletividade. “Não podemos permitir que o particularismo europeu seja imposto como universal”, exclamou, lançando um questionamento para a plateia: “Por que todos são nativos ou indígenas mas os europeus não? Por que a música deles é clássica e a sua é folclórica?”. Suas perguntas ecoam fundo nos corações e mentes dos que acreditam que é preciso pensar criticamente para melhor entender e transformar a realidade.