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Dante Lucchesi é um dos premiados na 58ª edição do Prêmio Jabuti

Primeira vez que um livro de Linguística é premiado
A cerimônia de entrega da 58ª edição do Prêmio Jabuti – mais tradicional e importante premiação da literatura no país – será realizada no dia 24 de novembro, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo/SP. Na categoria Teoria/Crítica Literária, Dicionários e Gramáticas, o segundo lugar entre os títulos premiados pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) ficou com o livro "Língua e Sociedade Partidas: a polarização sociolinguística do Brasil", de Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti, professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O livro premiado aborda a questão do preconceito linguístico, investindo em uma análise histórica da constituição do português brasileiro articulada ao processo econômico-social de formação do país. O autor aponta que a obra se concentra no período que vai da Revolução de 1930 aos dias atuais e também lança luzes sobre as raízes históricas da divisão linguística do país, que remontam ao início da colonização portuguesa, nas primeiras décadas do século XVI.

Além de abordar o processo de normatização da língua através do qual, afirma o autor, a elite brasileira adota o cânone lusitano no bojo do projeto de “branqueamento do país”, o livro também faz uma reflexão sobre as barreiras que se colocam para difusão de uma visão científica da linguagem na sociedade. De acordo com o autor, “existe um grande desconhecimento da realidade da língua na sociedade, em função da larga hegemonia da visão tradicional, que tem um caráter eminentemente normativo, estabelecendo apenas o que é certo e o que é errado. Trata-se de uma visão que tem um grande peso social, embora diga pouco sobre a realidade da língua, que é plural e reflete a diversidade cultural da sociedade".

Lucchesi explica que a linguagem verbal está no cerne da condição humana e é o meio privilegiado no qual ocorrem todas as relações entre as pessoas. Ele ressalta que, para poder funcionar dessa maneira, a língua é estruturalmente variável. "Há sempre mais de uma maneira de dizer a mesma coisa, e, ao contrário do que se pensa, isso não compromete o funcionamento da língua. Ao contrário, isso faz da língua muito mais do que um mero sistema de comunicação".

O professor considera que, do ponto de vista estritamente linguístico, não há qualquer problema numa frase como "os menino estudou muito ontem". Ele destaca que a mesma frase em inglês (“the boys studied a lot yesterday”), tem uma estrutura similar igualmente sem concordância nominal e verbal, sendo o inglês a língua mais valorizada atualmente no mundo, enquanto quem fala assim no Brasil é considerado ignorante ou intelectualmente incapaz. "Isso configura o preconceito linguístico. Avalia-se negativamente a fala popular, não porque essa fala tenha qualquer problema em si, mas porque seus falantes são avaliados negativamente. Como o preconceito linguístico reforça o preconceito social, pode-se dizer que se estabelece aí uma dialética perversa".

Na visão do autor, o preconceito linguístico acaba legitimando o apartheid social que ainda caracteriza a sociedade brasileira, marcada por sua absurda concentração de renda. Ele entende a língua como um meio de construção da identidade social do indivíduo, de hierarquização das relações que ele estabelece e de convencimento e persuasão, entre outras funções que desempenha na vida social. "Já se disse que a fala é a segunda pele do indivíduo. Ao desqualificar a pessoa pela sua forma de falar, desqualifica-se a própria pessoa, legitimando ideologicamente o sistema que a super-explora, com base numa lógica discricionária, na qual se pensa que, se um indivíduo nem sequer sabe falar sua língua (o que é um paradoxo, para quem conhece minimamente a realidade da linguagem humana), ele está fatidicamente condenado a receber um salário de fome e viver eternamente na pobreza".

Ao destacar uma passagem do seu livro em que afirma que “nenhuma sociedade passa incólume por mais trezentos anos de escravidão”, Lucchesi recorda que o Brasil é provavelmente o país mais escravocrata da história da humanidade - tanto pelo número de pessoas escravizadas, quanto pelo tempo por que se estendeu a escravidão no Brasil -, e afirma que isso deixou marcas terríveis na mentalidade do país. Ele fala sobre a persistência de uma mentalidade plasmada no universo da escravidão, que divide a sociedade entre “pessoas de bem” e uma subclasse de indivíduos que servem apenas para sustentar os privilégios dos primeiros. E qualquer concessão que se faça aos últimos é vista como uma ameaça ao universo dessa “gente de bem”, que existe exatamente em função dessa exclusão social.

O autor destaca que “o livro revela as raízes racistas da discriminação das formas mais típicas da linguagem, que, dialeticamente, reflete e alimenta o apartheid social brasileiro". Ele considera que premiação tem um significado especial pelo seu compromisso com a luta contra o preconceito linguístico, que, no seu entendimento, é hoje um dos poderosos mecanismos de legitimação ideológica de uma sociedade absurdamente desigual, injusta e cruel.

"Embora tenha havido muitos avanços, como a tipificação do racismo como crime inafiançável, a língua ainda é lamentavelmente um terreno fértil para todo tipo de preconceito e discriminação. Nossas pesquisas empíricas têm demonstrado que as formas mais típicas da linguagem popular, que mais sofrem estigma social, são provenientes do processo de aquisição do português por parte dos índios e africanos e da nativização dessa segunda língua entre seus descendentes. Assim, a falta de concordância nominal e verbal tem sido historicamente rejeitada porque era própria da linguagem dos negros e mestiços. Revela-se assim o caráter racista do preconceito linguístico que ainda graça na sociedade brasileira impunemente", denuncia.

Questionado sobre qual seria o caminho para uma expressão mais pluralista e inclusiva da língua, Lucchesi observa que houve muitos avanços nas políticas públicas de ensino de língua ao longo de vários governos, inclusive a partir da produção dos Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1998. Porém, considera que ainda predomina na sociedade uma visão muito atrasada em relação à língua e seu ensino, que é alimentada pelos grandes meios de comunicação de massa. "O conservadorismo dos oligopólios midiáticos, tão nocivos ao país, também se faz sentir na língua", disse o professor, citando como exemplo o caso do livro de português distribuído pelo MEC, em 2011, que abordava a questão da variação e do preconceito linguístico e foi violentamente atacado, com ampla repercussão na mídia.

A concepção do livro "Língua e Sociedade Partidas" teve como ponto de partida justamente a intervenção do autor no episódio do “livro de português do MEC”, quando escreveu um texto que circulou com grande repercussão na Internet, sendo inclusive citado pelo procurador da república, em seu parecer que arquivou a ação civil pública que pedia o recolhimento dos quase 500 mil exemplares do livro distribuídos pelo MEC.

Lucchesi afirma que o grande desafio social dos linguistas, professores de português e profissionais de Letras em geral é combater o preconceito linguístico e o uso da língua como mecanismo de discriminação e exclusão social. "A melhor forma de fazer isso é divulgando uma visão científica da linguagem humana, ou seja, uma visão mais realista e consequentemente mais pluralista da língua. Fazendo as pessoas compreenderem que, apesar de haver uma forma mais adequada de empregar a língua em situações formais e sobretudo na escrita, que é normalmente chamada de 'norma culta', essa não é a única forma legítima de usar a língua. Mas, além da complexidade do tema, os linguistas ainda têm de enfrentar um verdadeiro boicote, particularmente dos meios de comunicação de massa, pois não interessa aos grupos dominantes uma real democratização da sociedade. Assim, a disputa ideológica em torno da língua se coloca hoje como uma frente de luta importante na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e pluralista. Por isso, tenho dedicado boa parte de minha atuação acadêmica à difusão do conhecimento científico sobre a linguagem humana".

O livro premiado está embasado em pesquisas na área da sociolinguística que o professor tem desenvolvido desde a década de 1990, focalizando o português popular e particularmente a linguagem de comunidades quilombolas, com o objetivo de mensurar os efeitos do contato do português com as línguas africanas (e indígenas também) nas atuais variedades da língua portuguesa no Brasil. A pesquisa já tinha produzido um livro anterior, publicado pela EDUFBA, em 2009, O Português Afro-Brasileiro (com reimpressão em 2015), que já teve um grande impacto nos meios linguísticos do país.

Toda essa reflexão foi reunida no texto da tese defendida por Lucchesi no concurso público para Professor Titular de Língua Portuguesa da UFBA, em 2012. Depois, com o objetivo de tornar o texto acessível a um público mais amplo, foi editado o livro "Língua e Sociedade Partidas: a polarização sociolinguística do Brasil", lançado no ano passado. Sobre a premiação, o autor destaca que "é a primeira vez que um livro de Linguística é premiado no Jabuti. Isso tem uma grande importância, para romper com isolamento dessa ciência e diminuir o dogmatismo e o obscurantismo que plasmam a visão da língua na sociedade".

Dante Lucchesi é responsável pela coordenação do Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia, sediado no Instituto de Letras da UFBA, que se dedica ao estudo da realidade sociolinguística do Brasil e do processo histórico da sua formação, considerando o contato entre línguas e o caráter pluriétnico da sociedade brasileira. O trabalho realizado pelo projeto de pesquisa Vertentes junto a comunidades rurais do interior da Bahia e bairros populares de Salvador teve uma importância fundamental para o desenvolvimento do projeto.

"As análises sociolinguísticas da fala dessas comunidades forneceram a base empírica para a formulação de nossa visão sobre a polarização sociolinguística do Brasil. Em ciência, não basta você ter uma visão apenas impressionista da realidade, é preciso dar consistência teórica a essa visão, dentro dos axiomas compartilhados pela comunidade científica, e testar empiricamente as hipóteses produzidas por sua teoria, por meio da pesquisa de campo".

Neste ano de 2016, o professor Dante Lucchesi passou a exercer também o cargo de professor titular de Língua Portuguesa no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal (UFF). "Apesar da minha redistribuição para a UFF, que coloca novos desafios para minha carreira acadêmica, continuo mantendo uma estreita relação com a UFBA, da qual muito me orgulho, pois a UFBA tem um papel central em toda a minha trajetória acadêmica e continuará tendo". A sua bolsa de produtividade na pesquisa concedida pelo CNPq, que tem validade até 2020, permanece vinculada a sua pesquisa no Projeto Vertentes, no Instituto de Letras da UFBA.

 

Prêmio Jabuti

O Prêmio Jabuti, criado no ano de 1958, é outorgado anualmente pela CBL, conferindo aos vencedores o prestígio e reconhecimento da comunidade intelectual. Na edição deste ano, os vencedores foram definidos por um juri formado por especialistas de cada categoria, indicado pelo Conselho Curador do Prêmio, composto por Marisa Lajolo, Antonio Carlos de Morais Sartini, Frederico Barbosa, Luís Carlos de Menezes e Pedro Almeida.

Os primeiros colocados receberão o troféu Jabuti e R$ 3,5 mil. Os ganhadores dos segundos e terceiros lugares também serão premiados com troféu. Durante a cerimônia de premiação, que acontecerá na próxima quinta-feira (24/11), serão anunciados ainda os vencedores dos prêmios de Livro do Ano – Ficção e Livro do Ano – Não Ficção, que receberão o troféu e a premiação no valor de R$ 35 mil cada.