Se não se prender o vocábulo inglês a seu original e estrito vínculo com as artes visuais, pode-se dizer com toda propriedade que o último dia do Pint of science em Salvador abriu espaço para um verdadeiro happening no bar Caranguejo do Porto, na Barra, a cargo do compositor e professor Paulo Costa Lima.
Na exploração do tema das relações entre música, pesquisa e ciência, Paulo Lima pôs a audiência a ouvir Bach e os índios do Xingú, Gilberto Mendes e Noel Rosa, expressões musicais dos aborígenes da Polinésia e Vivaldi. Mais, fez a plateia cantar junto com ele, repetidamente, IôIá, enquanto uma cantora lírica desenvolvia numa tevê o fraseado de um longo solo da obra de Vivaldi
O encerramento do Pint of science teve além de música, jornalismo on-line e debate sobre epidemias provocadas por vírus, as antigas e as emergentes. O organizador do festival em Salvador, Denis Soares, vice-diretor da Faculdade de Farmácia, falou sobre a alegria de ter o evento internacional realizado nesta cidade pela primeira vez. Em sua avaliação, o objetivo foi plenamente alcançado com a travessia de um ambiente formal para o informal, criando a oportunidade de debater, em um espaço aberto, linhas de pesquisa nas diversas áreas de conhecimento. “Esse foi o primeiro, espero que a gente consiga mais e mais nos próximos anos”, disse.
Jornalismo em Redes Digitais
Assim que começou seu bate papo (como ela própria definiu a palestra) sobre o tema “Inovação no Jornalismo em Redes Digitais”, na noite da última quarta-feira, a jornalista, professora e atual diretora da Faculdade de Comunicação da UFBA (Facom) Suzana Barbosa, falando para um público de maioria jovem, entre os suculentos sanduíches do RedBurguer N Bar, recebeu a provocação: “Há muito tempo é anunciada a morte do jornalismo impresso, que seria substituído por veículos em rede, mas o que vemos é os jornais sobreviverem, à exceção do Jornal do Brasil, se falarmos na grande imprensa brasileira, essa perspectiva ainda não se concretizou. Mesmo na Bahia, um grande jornal agoniza, mas ainda pulsa”.
“Fora do pais e em outros estados brasileiros, vários deixaram de circular, ou circulam apenas em meio digital, mas as grandes empresas estão se movendo, buscando se adaptar a um novo contexto”, respondeu Suzana. “Os meios hegemônicos, o que a gente chama de mainstream, eles não estão mais sozinhos. Era muito fácil, nas décadas de 70/80, a publicidade financiar inteiramente os grandes meios, que dependem disso. Só que esse modelo de negócio se esgotou. Não se pode mais sobreviver apenas disso, num cenário que exige mudanças e adaptações contínuas. Como as organizações jornalísticas – principalmente as do mainstream – estão definindo estratégias para assegurar o seu espaço em um ecossistema midiático cada vez mais complexo com forte domínio das redes sociais? ”
“Inovação é palavra de ordem para o jornalismo. E também o maior desafio. Considerando-se o contexto atual de predomínio do digital, dos dispositivos móveis, das mídias sociais, da multimídia, inovar é o que querem e o que perseguem as organizações jornalísticas”, afirma a professora. “Nesse contexto – o da quinta geração do jornalismo em redes digitais –, os dispositivos móveis são considerados propulsores de um novo ciclo de inovação, porque vão reconfigurar a produção, a publicação, a distribuição, a circulação, a recirculação, o consumo, a recepção de conteúdos jornalísticos e os modelos de negócio em multiplataformas”.
Tudo isto vem sido discutido há mais de 20 anos pelo Grupo de Pesquisa em Jornalismo On Line, ligado à pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Facom, coordenado pela professora Suzana. “Dentre as inovações, a tecnológica muitas vezes é a que é evidenciada como sinônimo de inovação. Porém, para o jornalismo, as inovações estão também relacionadas a processos, produtos, modelos de gestão, modelos de negócio, formatos de conteúdo, narrativas, linguagens, bem como a inovação social: os usos ou efeitos sociais dos processos interativos decorrentes da relação entre organizações jornalísticas e o público leitor/usuário – a audiência –, assim como a maneira como os agentes sociais (organismos públicos, privados, entidades, etc) se relacionam com as organizações jornalísticas”.
Falando para um público formado por pessoas que conhecem jornal, sites noticiosos, informa-se e participa ativamente através das redes sociais, acompanha informações atualizadas em seus smartphones e tablets – seja das grandes marcas jornalísticas locais, nacionais e internacionais, seja de organizações jornalísticas independentes – Suzana Barbosa realmente estabeleceu um diálogo caloroso e intenso, que avançou além do tempo estabelecido pela organização e animou a noite do Itaigara, fechando com sucesso a edição 2017 do Pint of Science em Salvador. Os baianos, certamente, repetirão a dose.
Epidemiologia do Vírus
Em meados dos anos 1970, era comum ouvir falar da teoria da “transição epidemiológica”: a previsão de que as doenças infecciosas seriam completamente extintas no século 20, graças à progressiva descoberta de vacinas e ao uso de drogas, como a penicilina, descoberta nos anos 1940.
Crentes nessa tese, os colegas de turma da então estudante de medicina Maria da Glória Teixeira volta e meia exortavam-na a abandonar o interesse pela carreira de epidemiologista, uma vez que todas as doenças, supostamente, estariam extintas em breve.
Ledo engano: nos anos 1980, a descoberta da AIDS, causada por um vírus que ataca as células de defesa do corpo e não tem vacina ou cura, demoveria o mundo científico dessa esperança. E assim, a tal teoria acabava de ir “para o beleléu”, e os epidemiologistas seguiram sendo profissionais de extrema importância.
Assim contou a epidemiologista Glória Teixeira, ex-diretora do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, na última noite do Pint of science, no bar Barravento, cuja palestra traçou uma breve história da epidemiologia – área dos estudos em saúde coletiva que se preocupa em analisar incidências de contaminação de amplos contingentes populacionais, num determinado intervalo de tempo e de espaço.
Ela fez questão de condenar a atual tendência, que vem sendo seguida por algumas famílias – em geral das classes mais elevadas – de optar por não vacinar seus filhos, sob a justificativa de que o organismo humano é capaz de adquirir imunidade por si só. Afinal, a baixa da cobertura vacinal não apenas afeta as crianças não vacinadas, como favorece a circulação de doenças – algumas praticamente extintas há décadas.
A professora Glória abordou e respondeu perguntas da plateia sobre as chamadas “doenças emergentes e reemergentes”, que registram surtos de tempos em tempos – como chikungunya, dengue, zika e febre amarela, todas elas transmissíveis apenas através do mosquito aedes aegypti. Segundo a professora Gloria, para entender a rápida proliferação desse e de outros tipos de doenças, é preciso ter em mente o processo de globalização atualmente em curso, que globaliza não apenas pessoas e mercadorias, mas também doenças. “Hoje em dia, os deslocamentos em volta do mundo acontecem muito mais rapidamente. Um paciente contaminado com um vírus em fase de contágio pode chegar a qualquer lugar do mundo em questão de horas. Quer dizer: as doenças também foram globalizadas”, explica a professora, citando sua suspeita de que a chikungunya foi introduzida no Brasil a partir de um paciente contaminado vindo de Angola – e não da Colômbia, como a comunidade científica supunha.
A melhor maneira de combater esse tipo de doenças é, segundo a professora Glória, o combate incessante ao vetor de transmissão: os terríveis mosquitos aedes aegypti. Sobre eles, a pesquisadora contou uma história anedótica: após terem ‘se apercebido’ de que a população do Ceará, motivada por uma campanha do governo há alguns anos, passou a utilizar peixes da espécie beta como predadores dos ovos do aedes, as fêmeas do mosquito começaram a recorrer à astuta tática do “salto de oviposição”: “Ao perceber o movimento que os peixes faziam na água, as fêmeas do mosquito passaram a fazer a postura de ovos em lugares diferentes, um pouquinho em cada lugar, visando proteger a prole de predadores”.
Por fim, Glória ainda brincou com o público: “Acho que o DNA do aedes aegypti é muito mais antigo que o humano. O mosquito é muito mais esperto do que o corpo humano quando se trata de garantir a sobrevivência da prole.”
Fonte: EdgarDigital