Início >> Ufba Em Pauta >> Rumo ao doutorado nos EUA, via audácia e apoio institucional

Rumo ao doutorado nos EUA, via audácia e apoio institucional

Aprovada antes de concluir a graduação em Física

Aprovada em primeiro lugar para o curso de Física na UFBA, há quatro anos, a estudante Roseane dos Reis Silva vai delineando uma trajetória acadêmica brilhante, e antes mesmo de concluir a graduação já foi aceita para o doutorado em Biofísica Molecular e Computacional na Universidade de Washington em St. Louis, Missouri, Estados Unidos (EUA).

Roseane, que vai se formar ao fim do segundo semestre letivo de 2016, em abril próximo, fez um ano de intercâmbio acadêmico pelo Programa Ciência sem Fronteiras na Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, EUA, começará o doutorado em 30 de junho.

A jovem de 23 anos, moradora da cidade de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, amante das disciplinas da área de ciências exatas desde o ensino médio, pretende seguir carreira de pesquisadora e docente em linhas interdisciplinares que contemplem interfaces da Física com áreas como Biologia, Química, Farmácia e Medicina.

Ela falou com o EdgarDigital sobre suas conquistas, apesar das dificuldades financeiras e do clima de escassez na escola pública; dos desafios acadêmicos enfrentados por estudantes do sexo feminino em áreas de grande presença masculina; da importância da mobilidade acadêmica como diferencial na graduação e das expectativas no doutorado, cujo foco são modelos biológicos, softwares de simulação computacional e programação, além de desafios como a insurgência de bactérias resistentes. Abaixo, a entrevista de Roseane:

 

Qual o seu sentimento diante da aprovação para o doutorado numa universidade norte-americana, antes mesmo de concluir o curso de graduação no bacharelado em Física da UFBA ?

Eu fiquei muito feliz com a aprovação, pois foi resultado de esforços dedicados e, particularmente, porque foi uma vitória pessoal para mim. Acho que conseguir a aprovação para o doutorado, antes mesmo de concluir a graduação foi mesmo resultado da ousadia de tentar. Teríamos talvez mais aprovações se tentássemos mais.

Eu vou fazer um doutorado na área de Biofísica Computacional e Molecular, que é a área que mais gosto e não temos esse programa por aqui. Nos Estados Unidos não é incomum estudantes saírem da graduação e irem direto para um programa de doutorado, mas eu tinha um desafio maior, já que era estudante internacional e as vagas para pessoas de outros países são muito limitadas.

 

Então o processo seletivo foi muito criterioso? 

O processo de seleção foi trabalhoso. Durante o ano de 2016, fiz três provas que eram necessárias para enviar a minha aplicação. O TOEFL, que é o teste de proficiência em inglês, o GRE (Exame Geral da Pós-graduação) e o GRE de Física, que é a prova padronizada para graduandos em Física. Além de estudar para as provas, eu precisei economizar para conseguir arcar com os custos das inscrições em cada uma delas, que têm valor elevado. Também foi preciso escrever redações, como o Statement of Purpose (numa tradução livre, Declaração de Intenções) e textos contando minha trajetória pessoal e meus objetivos de pesquisa.

 

Já está tudo pronto para começar o curso? Sabe como será sua atuação no programa?

A data prevista de início na Universidade de Washington, em St. Louis, é 30 de junho. No início, eles permitem que eu trabalhe algum tempo em laboratórios diferentes até decidir em qual pretendo ficar e realizar as pesquisas do doutorado. O programa em Biofísica Molecular e Computacional concede bolsa integral para todos os aprovados, que inclui isenção total de custos e taxas da faculdade, plano de saúde e um salário mensal que é suficiente para custear moradia e viver na cidade de St. Louis.

 

Sua participação no intercâmbio acadêmico proporcionado pelo Ciência sem Fronteiras (CsF) facilitou essa conquista?

O maior benefício do intercâmbio foi conhecer mais áreas possíveis de se trabalhar na Física. Foi lá que adquiri meu interesse por Biofísica Computacional, por ser uma grande área de pesquisa na universidade e, principalmente, pela grande interdisciplinaridade que esta oferecia. Particularmente, eu fiquei fascinada pelos estudos de infecções virais com recursos computacionais, pela análise física de fenômenos biológicos e pelas possibilidades que essas pesquisas poderiam trazer para a saúde pública.

Após os dois semestres seletivos, ainda como parte do CsF, podíamos fazer estágio em empresas e/ou laboratórios de pesquisa. Foi então que comecei a procurar laboratórios e pesquisadores para trabalhar durante o verão. Essa era uma parte cansativa e decisiva para o pessoal do intercâmbio, já que encontrar o estágio era responsabilidade somente do bolsista.

Depois de muitos e-mails e entrevistas, eu passei para um estágio de verão no Grupo de Biofísica Computacional do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), sob orientação do cardiologista e biofísico Collin Stultz. No mesmo grupo, havia um cientista visitante brasileiro, Diego Nolasco, então foi uma experiência muito boa, pois pude trabalhar numa pesquisa com forte relação com o Brasil.

Durante meu estágio, aprendi bastante sobre modelos biológicos, softwares de simulação computacional e programação. Com o grupo, trabalhei numa pesquisa que envolvia peptídeos antimicrobianos. O estudo desses peptídeos é importante, pois eles podem ajudar a vencermos o atual desafio que é a insurgência de bactérias resistentes aos antibióticos que temos atualmente. Com um mecanismo de ação que quebra a membrana das bactérias, esse grupo de pequenas moléculas é uma das promessas futuras para os novos antibióticos. Particularmente, os peptídeos que estudamos eram oriundos de uma vespa chamada Polybia paulista.

 

Quais os outros aprendizados do intercâmbio?

Eu estudei dois semestres letivos na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, que estava entre as três instituições que eu pré-selecionei como preferenciais e foi muito bom, porque ela é uma das 30 melhores universidades na área de Física e Astronomia do mundo e, além disso, tinha uma estrutura curricular semelhante à que temos na UFBA.  Entretanto, o método de avaliação é diferente,  pois valoriza mais sua dedicação aos estudos do que apenas o desempenho em provas de curta duração.  Acho que o desafio maior foi me adaptar a uma intensa rotina de estudos fora da sala de aula.  No método de ensino da maioria das universidades norte-americanas passamos menos tempo em sala de aula e estudamos muito mais por conta própria. A carga de trabalho de casa era grande, e isso fazia com que precisássemos estudar constantemente os conteúdos.

Mas eu gostei bastante: obtive excelente desempenho nos cursos de Física e Matemática que fiz por lá, sinalizando que meus cursos anteriores na UFBA haviam me preparado bem nessas áreas.

 

A barreira linguística foi um desafio neste período? Houve dificuldades financeiras? 

Sim, nos momentos iniciais o idioma foi uma barreira, depois o resto foi muito tranquiloEu comecei a estudar inglês no mesmo ano que entrei na UFBA, em 2013.  Do começo do curso até a viagem, foram um ano e meio de estudo até conseguir o nível adequado, medido pelo TOEFL. Mesmo assim, antes de viajar, ainda não tinha domínio completo do inglês, e talvez essa tenha sido a primeira dificuldade, principalmente para conversação.

Não tive dificuldades financeiras de estada durante o intercâmbio. A universidade que nos recepcionou estava preparada para acomodar os estudantes brasileiros e o valor da bolsa que recebíamos era suficiente para o custo de vida na cidade. 

 

Com sua experiência de intercâmbio, que vantagens você vê na mobilidade acadêmica para os estudantes de graduação?

Tendo feito 3 anos do meu curso aqui na UFBA, e um ano em Illinois, acredito que nós temos uma estrutura muito semelhante em relação ao conteúdo para a formação de um bacharel em Física. Então, a experiência de sala de aula é boa, mas não é o diferencial. Para estudantes de graduação, acredito que o melhor é poder interagir com pesquisadores de diferentes nacionalidades, com diferentes metodologias de pesquisas, e também expandir a visão sobre o que se pode fazer enquanto profissional. Ciência e Tecnologia não são feitas só localmente, então estamos sempre acompanhando pesquisas e desenvolvimentos produzidos em diferentes partes do mundo.  Vivenciar o modo como fazemos ciência no Brasil e em outros países dá aos estudantes novas possibilidades de pensar como ele próprio quer trabalhar.  Além disso, criamos contatos em outras universidades que podem facilitar parcerias de pesquisa entre a UFBA, o Brasil, e esses outros países.  Acredito que a inexperiência dos estudantes de graduação seja também a oportunidade de explorar diferentes áreas, e de não apenas seguir áreas já conhecidas e que parecem mais confortáveis por aqui. É um aprendizado que, combinado ao que vivemos por aqui, pode moldar o cientista/profissional que seremos. 

 

Como sua trajetória a levou a buscar esse diferencial como estudante universitária?

Eu gostava das ciências exatas desde o ensino médio que fiz no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, em Simões Filho. Participei de algumas olimpíadas de física, matemática e astronomia que me motivaram a estudar mais profundamente essas áreas. Inicialmente, eu gostava da possibilidade de entender o funcionamento das coisas, de conceber e resolver problemas.  Durante a graduação, acredito que aprimorei muito o conhecimento matemático e também adquiri conhecimento sistemático das áreas da Física.

 

E quanto à sua experiência na iniciação científica?

Na UFBA, participo do PICME – Programa de Iniciação Científica e Mestrado em Matemática, onde curso matérias da graduação em Matemática para expandir conhecimentos da área. Além disso, trabalho em projetos com o professor Samuel Pita no Labimm (Laboratório de Bioinformática e Modelagem Molecular) da Faculdade de Farmácia. Lá, realizo simulações de dinâmica molecular de proteínas com o objetivo de compreender propriedades em nível atômico que possam auxiliar na resolução de problemas biológicos / farmacológicos.

 

Já enfrentou alguma dificuldade por ser mulher numa área em que há uma forte predominância masculina?

Essa é uma questão bem complexa, porque a maioria das dificuldades é difícil de ser percebida. No curso de física, sempre me senti acolhida pelos colegas, sem problemas. Mas, no ambiente de sala de aula, a postura de alguns docentes em relação às mulheres da turma trazem alguns desafios. Algumas vezes, parece que precisamos provar que somos capazes de estar lá. E quando somos avaliadas ou questionadas, não é somente a nossa habilidade acadêmica que está em xeque, mas também a nossa capacidade enquanto mulher de estar naquele ambiente.  Facilmente, se uma mulher da turma responde algo errado, há a tendência a generalizar com o estigma de que “mulheres erram mais em cálculo”, e isso não parece frequente entre homens. Essa é uma carga a mais que carregamos.  Acredito que eu, e talvez as minhas colegas, superamos isso todos os dias porque continuamos mostrando que também podemos estar ali. 

 

Quais outros desafios você enfrentou ao longo de sua carreira estudantil?

Acho que, muitas vezes, na escola pública, enfrentamos barreiras para ter real acesso a educação. Em geral, há muitos outros problemas por trás do simples ato de ir à escola. O estudante da escola pública demora muito para ter perspectiva sobre o que quer e pode fazer. Não sabe por que aprender. E, então, descobre mais tardiamente de do que deveria.

Na minha experiência, eu me via sempre correndo atrás. Eu entendia que tinha ficado para trás, porque não tive preparação ideal no ensino fundamental em matemática, e o ensino médio foi uma corrida contra o tempo para recuperar tudo que perdi. Além disso, havia dificuldades financeiras, então eu precisei trabalhar cedo pra continuar na escola. Eu não sabia exatamente naquela época o que eu queria fazer da vida, mas tinha um sentimento de que queria fazer algo que pudesse impactar na sociedade de alguma forma. E logo descobri que seria nas ciências exatas, porque era a área que mais me identificava.

Acho espantoso que tenhamos que vencer barreiras para simplesmente poder querer fazer algo. Queremos mais pessoas nas ciências exatas, mas existem dificuldades extras além da própria dificuldade que é aprender matemática, física e afins.

No fim, acredito que eu persisti porque não dava para aceitar ser parada por barreiras que não deveriam existir. E desejo que melhoremos a ponto de oferecer oportunidades a todos na educação pública. 

 

Então, quais são seus planos para o futuro?

Eu pretendo seguir carreira de pesquisadora e docente, porém numa linha com maior interdisciplinaridade, procurando interfaces da Física com áreas como Biologia, Química, Farmácia e Medicina.

 

Fonte: EdgarDigital