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Reconhecimento do distúrbio de voz relacionado ao trabalho é tema da entrevista de Maria Lúcia Masson

Maria Lúcia Vaz Masson
A professora Maria Lúcia Vaz Masson, do Departamento de Fonoaudiologia do Instituto de Ciências da Saúde (ICS/UFBA), desenvolve pesquisas sobre o distúrbio de voz relacionado ao trabalho e os seus impactos sobre a saúde dos trabalhadores. Em entrevista, ela ressalta a situação dos professores, que muitas vezes enfrentam condições precárias do ambiente e organização do trabalho, como presença de ruído, acústica da sala de aula inadequada, uso intenso da voz, além do estresse e pressão no trabalho.
 
O recente reconhecimento, pelo Ministério da Saúde, do distúrbio de voz como doença relacionada ao trabalho, representa um grande avanço em saúde do trabalhador, tanto na notificação do agravo para planejamento de políticas de saúde, quando em linha de cuidado, aponta a professora. Esse reconhecimento, que é reivindicado há mais de 20 anos, é fruto da mobilização de sindicatos, universidades, conselhos e associações profissionais.
 
Masson também fala sobre o uso de estratégias protetoras da voz, que são estudadas no Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho e os atendimentos fonoaudiológicos oferecidos nas unidades de saúde da cidade. “O que posso dizer, em linhas gerais, é que Salvador é muito carente em termos de oferta de serviços fonoaudiológicos. A prefeitura municipal tinha, até pouco tempo, três fonoaudiólogos para atender a quase três 3 milhões de habitantes. É a pior capital do Nordeste em termos de assistência”.
 
Confira!
 
– Quais as evidências que apontam os distúrbios de voz como doença relacionada ao trabalho docente?
 
Estudos epidemiológicos revelam elevada ocorrência de problemas de voz associados a condições precárias do ambiente e organização do trabalho, como presença de ruído, acústica da sala de aula inadequada, uso intenso da voz, além do estresse e pressão no trabalho. Os professores compõem a categoria mais estudada, mas há estudos também com outros profissionais da voz como operadores de telesserviços, atores, cantores, além de profissionais que não utilizam a voz como instrumento de trabalho, como metalúrgicos.
 
Com o projeto “Há evidências suficientes para reconhecer o Distúrbio de Voz como Doença Relacionada ao Trabalho?” em parceria com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Estácio de Sá e London College, já produzimos alguns resultados. Além do artigo sobre a busca pelo reconhecimento do distúrbio de voz relacionado ao trabalho (DVRT), estamos com mais dois artigos em elaboração para publicação, uma revisão sistematizada, que traz dados sobre o distúrbio de voz relacionado ao trabalho e fatores associados com achados semelhantes ao que já havia na literatura, considerando o número de trabalhos encontrados.
 
Chegamos a uma ocorrência média de 45,1% de problemas de voz, ou seja, quase metade dos trabalhadores investigados estavam adoecendo por conta do trabalho. Isso sem contar aqueles que já estão afastados e, portanto, nem puderam ser avaliados. É um percentual muito elevado que clama por uma intervenção. Também identificamos, numa outra pesquisa junto ao Tribunal Superior do Trabalho, 87 acórdãos referindo-se à disfonia ocasionada no trabalho. A maioria dos trabalhadores que recorreram à Justiça foram teleoperadores (60%), seguidos por professores (21%). Houve ainda um caso de preparador de peças e auxiliar de limpeza. Mesmo não utilizando a voz como instrumento de trabalho, é possível comprometê-la com exposição química, por exemplo, por produtos de limpeza que irritem a mucosa das pregas vocais (cordas vocais), causando um DVRT. Em nosso Ambulatório de Voz Profissional no Ambulatório Magalhães Neto, no Complexo HUPES, atendemos esses casos, inclusive aqueles que não utilizam a voz como instrumento de trabalho, mas também apresentam problemas de voz devido ao trabalho.
 
– Qual o impacto para esses profissionais?
 
No caso dos profissionais da voz, eles ficam incapacitados para trabalhar porque o instrumento de trabalho deles é a voz. Como um professor, por exemplo, poderia dar aulas sem voz? É a mesma situação que um digitador com LER/DORT, ou um jogador de futebol com a perna quebrada. Não há alternativa senão a readaptação para outra função, muitas vezes também prejudicial, pois apesar de não usar a voz no trabalho, o professor fica exposto a outros fatores de risco (químico, no caso) como a poeira de bibliotecas. Há situações, inclusive, que mesmo sob condições adversas o professor não quer parar de dar aulas. Atendemos um paciente no Ambulatório de Voz Profissional que estava disposto a aprender a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para continuar sendo professor, porque não queria se afastar do trabalho. Essa opção, muitas vezes, tem caráter financeiro. Ou vc trabalha ou perde seu salário. Isso acontecia com os professores da rede estadual de ensino da Bahia, antes da mudança em 2013, que incorporou o adicional de regência de classe (quase a metade dos vencimentos mensais) ao salário do professor readaptado.
 
– As condições de trabalho docente e a infraestrutura das escolas influenciam os distúrbios da voz?
 
R: Sem dúvida! O ambiente e a organização de trabalho são fatores determinantes do DVRT. A particularidade da voz é que nós a usamos em outros contextos que não os profissionais. Contudo, mesmo havendo um uso pessoal, se há fator de risco na atividade profissional, ele deve ser estabelecido como concausa, atribuindo o nexo entre trabalho e agravo/doença. Por isso, é uma doença “relacionada ao trabalho” e não “do trabalho”, como é o caso da asbestose, fruto da exposição ao pó de amianto na confecção das telhas onduladas.  Muitas vezes, surgem dúvidas como: “Ah, mas ele canta no final de semana!”; ou ainda: “Mas também, ele bebe!”. O que precisa ser dimensionada é a exposição. O que é cantar no final de semana, em vista de 40 horas semanais de aula? Ou beber uma cerveja, “para aliviar a cabeça” na 6ª feira? É muito pouco, considerando as 8 horas diárias de aulas, com acústica desfavorável, sob ruído, com número excessivo de alunos, sem microfone, na presença de pó de giz ou alergia à caneta piloto dos novos quadros brancos.
 
Sob ponto de vista mais estrutural, fizemos um estudo sobre os projetos de construção de salas pelo Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE) e encontramos preocupações restritas com a acústica das salas de aula. Os materiais de construção e revestimento das salas de aula foram: cerâmica, alumínio, madeira e vidro, componentes que contribuem para elevar o tempo de reverberação, prejudicando a inteligibilidade de fala (Pinheiro, Masson, Lopes, 2017). A preocupação maior, quando se opta pelo uso de azulejos como revestimento das paredes das salas de aula, parece ser com custos de limpeza e não com a saúde do professor.
 
– O que representa o reconhecimento pelo Ministério da Saúde dos distúrbios da voz como um problema relacionado ao trabalho?
 
O reconhecimento do distúrbio de voz relacionado ao trabalho representa um grande avanço em termos de Saúde do Trabalhador, tanto em termos de notificação do agravo para planejamento de políticas de saúde, quando em termos de linha de cuidado, que tem como foco a vigilância em saúde, identificando ambientes e propondo modificações onde as condições de trabalho são adoecedoras.
 
Contamos a história da busca do reconhecimento do DVRT em artigo recentemente publicado, disponível online (Masson, Ferrite, Pereira, Ferreira, Araújo, no prelo). Estamos há 20 anos nessa luta, mobilizando a participação da sociedade, sindicatos, universidades, conselhos e associações profissionais, além do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST). Vivemos momentos de euforia, a exemplo de 2004, quando foi elaborada a primeira versão do Protocolo DVRT e a iminência de sua publicação e, novamente, em 2012, na oportunidade da consulta pública. Da mesma maneira que tivemos muitas frustrações e conflitos nessa história, retardando a publicação do Protocolo. Embora a conjuntura nos dias de hoje seja totalmente desfavorável para os trabalhadores em termo de direitos, a sinalização positiva da Coordenadoria Técnica de Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde na atualização da lista de doenças relacionadas ao trabalho nos surpreendeu positivamente. Continuamos trabalhando no sentido de garantir a publicação do Protocolo e a inclusão do distúrbio de voz na lista de doenças relacionadas ao trabalho.
 
– Poderia falar sobre a importância do uso de estratégias protetoras da voz de professores?
 
Essa também é uma de nossas frentes. Enquanto a acústica das salas de aula não é resolvida, estamos investigando estratégias que podem proteger a voz do professor no contexto escolar em nosso grupo de estudos sobre Trabalho e Saúde Docente (TRASSADO), por meio de projetos financiados pelo CNPq e FAPESB. Já havíamos testado o efeito do aquecimento vocal antes da aula e desaquecimento posterior em minha tese de doutorado (Masson, 2009). Em 2015, publicamos o resultado de uma pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho (SAT-UFBA), verificando o efeito do aquecimento vocal em intervenção de seis semanas (Pereira, Masson, Carvalho, 2015). Mais recentemente, realizamos as outras três intervenções: amplificação da voz durante a aula; nebulização com soro fisiológico no início da aula e no intervalo (a cada duas horas, aproximadamente) e exercício do trato vocal semiocluído (ETVSO) com canudo comercial também antes da aula. Tal exercício consiste em uma série simples de vocalizações, utilizando uma garrafa de água 500 ml até a metade e canudo comercial. Todas as estratégias tiveram um determinado efeito positivo na voz do professor. Ficamos bastante entusiasmados com os resultados do canudo comercial pois, além de estratégia de baixo custo e fácil acesso, é mais simples. Já temos artigos publicados fruto das dissertações de meus orientandos do SAT-UFBA (nebulização: Santana, Masson, Araújo, 2017), (amplificação vs. nebulização: Masson & Araújo, in press), (ETVSO com canudo comercial: Cabral, Masson, Araújo, 2017).
 
– Um de seus projetos de pesquisa está articulado ao “Programa de Atenção à Saúde e Valorização do Professor da Secretaria de Educação do Estado da Bahia” e visa instrumentalizar os docentes para a redução do grau de disfonia e prevenção dos agravos vocais. Como aconteceu essa experiência?
 
Esse foi nosso primeiro projeto aqui na Bahia. No final de 2008, a Secretaria de Educação (SEC-BA) lançou o “Programa de Atenção à Saúde e Valorização do Professor”. A ideia foi criar uma rede de atenção integral à saúde do professor que atuasse fundamentalmente na prevenção, mas também no diagnóstico e assistência, junto aos maiores agravos à saúde do professor. A saber: distúrbio da voz, LER/DORT e transtornos mentais.  Criamos uma extensão na UFBA em parceria com as Instituições de Ensino Superior em Fonoaudiologia da região metropolitana de Salvador à época (UFBA, UNEB, UNIJORGE e UNIME). A SEC-BA contratou profissionais nas referidas áreas que, junto com os alunos, realizavam oficinas multiprofissionais nas escolas. Contava-se, ainda, com um serviço de acolhimento e orientação no SAC-Educação, assim como referência diagnóstica no Serviço de Saúde Ocupacional do Complexo HUPES (hoje no Ambulatório de Voz Profissional do Serviço de Fonoaudiologia), assim como atendimento clínico também nas IES parceiras. Algumas de nossas investigações viraram dissertações de mestrado, trabalhos de conclusão de curso e foram apresentadas em congressos de Fonoaudiologia, revelando o ineditismo do programa. Fomos premiados pela Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia em 2009, com as 10 melhores “Campanhas de Voz” e novamente em 2015, com o 3º lugar. O Governo do Estado da Bahia também reconheceu as ações do Programa, atribuindo o Prêmio “Boas Práticas”, em 2010. E continuamos seguindo com nosso objetivo de buscar melhores condições de trabalho aos docentes e profissionais acometidos por problemas de voz no trabalho.
 
– A partir de um projeto piloto desenvolvido nas escolas de educação infantil, na Península de Itapagipe, você também procura estruturar um programa de intervenção com ênfase nos problemas de saúde mais frequentemente presentes entre docentes. Quais os resultados dessa intervenção?
 
Ainda estamos no início desse projeto. Incialmente, será um mapeamento das condições de trabalho de professores de educação infantil de escolas particulares da Península de Itapagipe, a pedido do Sindicato dos Professores no Estado da Bahia (SINPRO-BA). Tal solicitação nos chegou a partir de uma demanda específica da situação de violência junto a educadores, como o envenenamento com bolachas de chumbinho oferecidas pelos próprios alunos. A partir do levantamento das demandas, veremos quais serão as intervenções prioritárias a serem realizadas nas unidades escolares desse território.
 
– Os trabalhadores costumam recorrer à justiça para compensar os danos causados por este adoecimento? Qual a natureza dessas ações na justiça?
 
Não conseguimos dizer o quanto isso é frequente na população, mas o levantamento que fizemos junto ao portal do Tribunal Superior do Trabalho revela que sim, há ações na Justiça de trabalhadores que buscam compensações por DRVT. A maioria é constituída por teleoperadores, seguidos de professores. Dos 87 acórdãos analisados, 65,5% tiveram o nexo com o trabalho estabelecido. Os ganhos concedidos foram 42,5% parcial e 32% total, referindo-se 50% a indenizações por danos morais (média R$ 14.627,08; de 4.000 a 60.000); 8% de indenizações por danos materiais (média R$ 8.250,00; de 1.500 a 20.000); 5,7% multas a empresas (média R$ 750,00/dia; de 500 a 1.000) e 31% benefícios compensatórios. Esse é o resultado de um trabalho de conclusão de curso recém-defendido e que está sendo submetido para publicação.
 
– Quais os resultados das oficinas para Revisão do Protocolo de Distúrbio de Voz Relacionado ao Trabalho que foram realizada neste ano?
 
Ficamos muito satisfeitos com o resultado das oficinas junto ao Ministério da Saúde, realizadas em abril de 2017. A Comissão Técnica em Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde é constituída por profissionais sérios e competentes, dentre eles fonoaudiólogos e fisioterapeutas com aprofundamento em Saúde do Trabalhador. Realizamos uma discussão bastante produtiva, que tinha como participantes uma comissão de experts na área da Fonoaudiologia, representantes da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF), Academia Brasileira de Laringologia e Voz (ABLV), Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) e Conselho Federal de Fonoaudiologia. Os dois dias de oficina promoveram discussões sobre nomenclatura, estudos epidemiológicos evidenciando o nexo entre distúrbio de voz, diagnóstico para vigilância em saúde, linha de cuidado e ficha de notificação do DVRT. Após as oficinas, o material foi revisado pelo grupo e agora está em fase de diagramação no MS, aguardando sua finalização para publicação.
 
– O que revelam os relatórios de Gestão do Serviço de Fonoaudiologia do Complexo HUPES e da Secretaria de Educação da Bahia? De uma forma geral, como se caracterizam os atendimentos fonoaudiológicos oferecidos nas unidades de saúde?
 
Sobre o relatório de gestão, trata-se da função que ocupei como Chefe do Serviço de Fonoaudiologia, na época de sua criação em 2007, e que finalizou em 2010, na minha segunda gestão. Referem-se ao levantamento de procedimentos fonoaudiológicos para pactuação com o SUS, assim como procedimentos prestados pelas áreas de Voz (em geral), Linguagem, Motricidade Orofacial e Audiologia. Tivemos, historicamente, nossa prestação de serviços vinculada a estágios supervisionados, portanto dependente do número de alunos. Nossa maior demanda era por profissionais que fossem vinculados ao serviço para realmente suprir a necessidade de assistência. O serviço cresceu e mudou seu perfil com a contratação, embora ainda não suficiente, de alguns fonoaudiólogos pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
 
Sobre o relatório da SEC-BA-2010, à época contávamos com uma equipe multiprofissional de diferentes áreas (Fonoaudiologia, Fisioterapia, Psicologia e Serviço Social). Atendemos a 51 escolas, com um quantitativo próximo a 2.000 professores. A equipe cresceu nos anos seguintes e começou a realizar um trabalho mais interdisciplinar, integrando as diferentes profissões. Contudo, a equipe voltou a decrescer mais recentemente, com as medidas de contingenciamento do Governo do Estado da Bahia, a partir de 2014. A promulgação da Emenda Constitucional no. 95/2016 (a qual limita os gastos públicos à correção pela inflação) deixou a situação ainda mais complicada.  O Programa sobrevive com um quantitativo de profissionais muito restrito (um por área) para que se possa realizar qualquer ação mais efetiva na escola, embora ainda continue com a parceria das instituições de ensino superior.
 
Mais recentemente, o Centro Docente Assistencial em Fonoaudiologia (CEDAF), nossa clínica escola do ICS-UFBA, foi conveniado ao SUS por intermédio da Prefeitura Municipal de Salvador. O que posso dizer, em linhas gerais, é que Salvador é muito carente em termos de oferta de serviços fonoaudiológicos. A prefeitura municipal tinha, até pouco tempo, três fonoaudiólogos para atender a quase três 3 milhões de habitantes. Levantamento realizado junto ao CNES, identificou que Salvador/BA possuía cinco fonoaudiólogos em 2004, diminuindo o quantitativo para três em 2014 (Santos, Arce, Magno, Ferrite, 2017).  É a pior capital do Nordeste em termos de assistência. Fortaleza/CE, que tem quase 1/3 da população de Salvador/BA, possui aproximadamente nove vezes o número de fonoaudiólogos. Isso faz uma grande diferença em termos da oferta de serviços e da organização de uma linha de cuidado. Tal situação deve ser reavaliada pelos agentes públicos e traduzida em termos de prioridades.