O surto do vírus zika, que atingiu o Brasil e deixou o mundo em alerta há cerca de dois anos, aparentemente arrefeceu. Mas isso está longe de significar que o grave problema de saúde pública decorrente dele esteja resolvido. Para além do sempre iminente risco de retorno da epidemia, a ciência ainda se pergunta: qual será o grau de comprometimento que as doenças ligadas à zika, como a microcefalia e outras alterações neurológicas, causarão às crianças atingidas? Que tratamentos podem proporcionar qualidade de vida a essas crianças e suas famílias? Que ferramentas a rede pública de atenção básica tem para atuar, de maneira eficaz, na redução desses danos?
Responder a essas questões é o objetivo de uma pesquisa multidisciplinar iniciada recentemente no Instituto de Saúde Coletiva da UFBA (ISC/UFBA), que irá acompanhar e atender, ao longo dos próximos três anos e meio, 203 crianças soteropolitanas, com idades entre 8 e 17 meses, que apresentam alterações neurológicas congênitas associadas à epidemia do vírus zika, e suas respectivas famílias. Coordenado pela pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) Darci Neves Santos, o projeto “Efeitos das manifestações neurológicas congênitas associadas ao zika vírus sobre o desenvolvimento infantil no contexto da Atenção Básica”, começou a ser posto em prática em dezembro e está estruturado em torno de duas frentes de atuação.
O foco central é o acompanhamento do desenvolvimento de crianças que nasceram com microcefalia, alterações neurológicas, deficiência auditiva, visual ou de linguagem – doenças do espectro da síndrome de deficiência congênita ligada ao zika vírus –, proporcionando-lhes estimulação cognitiva, psicomotora e fonoaudiológica especializada. Paralelamente, os pesquisadores buscarão conhecer e interferir nos contextos em que se dá o processo de desenvolvimento infantil, prestando assistência psicológica aos pais e familiares e estabelecendo diálogo permanente com os entes públicos de educação e saúde básicas (como creches, escolas, centros de referência em assistência social – CRAS – etc.).
“A literatura científica mostra uma relação direta entre desenvolvimento infantil e qualidade da estimulação no ambiente domiciliar. Estimular é o que de melhor pode fazer por alguém que apresenta algum grau de deficiência neurológica ao nascimento, principalmente antes dos 3 anos de idade, e pelo menos até os 6 anos”, explica a professora Darci. Tendo isso em vista, o projeto envolve uma equipe multidisciplinar formada por 8 pesquisadores e outros 20 membros – que inclui profissionais e estudantes das áreas de medicina, enfermagem, psicologia, terapia ocupacional, fisioterapia, fonoaudiologia, saúde coletiva e do bacharelado interdisciplinar em saúde.
Além dessas 203 famílias, o projeto irá acompanhar paralelamente um grupo de 100 outras famílias vizinhas, cujos filhos tenham nascido no mesmo período, porém sem nenhuma alteração causada pela zika. Elas receberão o mesmo tipo de acompanhamento, orientação e estimulação, para que seja possível comparar o desenvolvimento dos dois grupos. O objetivo é poder observar que tipo de limitações podem ser diretamente associadas à zika, e quais tendem a ser motivadas por outros fatores, ligados aos contextos familiar, social e econômico.
Ligada à linha de pesquisa Epidemiologia e Vigilância em Saúde do ISC, a pesquisa – de tipo coorte (modalidade de investigação científica que abrange grandes grupos de pessoas atingidas por um mesmo evento) circunscrita à cidade de Salvador – foi selecionada nacionalmente, no final do ano passado, para receber um financiamento de R$ 774,5 mil das principais agências brasileiras de fomento à pesquisa: CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Decit (Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde) e FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
“Ou fazíamos esse estudo agora, ou não o faríamos mais”, explica a professora Darci, atentando para a urgência da realização da pesquisa, haja vista o fato de algumas das crianças que nasceram com comprometimentos causados pela zika, no surto de 2015/2016, já se encontram com quase 2 anos de idade.
Mapeamento e acompanhamento
Assim, desde o dia 1º de dezembro, logo após a aprovação do financiamento, a equipe liderada pela professora Darci e pelas professoras Silvia Ferrite Guimarães (do Instituto de Ciências da Saúde da UFBA), Tânia Maria Araujo (do Núcleo de Epidemiologia da Universidade Estadual Feira de Santana) e Leticia Marques dos Santos (do Instituto de Humanidades e Artes da UFBA) concentraram esforços no mapeamento das ocorrências em bebês de doenças congênitas ligadas à zika na cidade de Salvador. Também integram a equipe pesquisadores ligados a instituições de outros estados (Andrea Jurdi, da Universidade Federal de São Paulo; Débora Falleiros de Mello, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; e Guilherme Werneck, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro), além da professora Hannah Kuper, da London School of Hygiene and Tropical Medicine.
Com base em dados do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância à Saúde (CIEVS) da Secretaria Municipal de Saúde, foram selecionados casos de crianças nascidas entre julho de 2015 e agosto de 2016, período em que o surto da zika registrou os maiores picos. O mapa revela maior que as maiores incidências de alterações associadas à zika concentram-se nos distritos sanitários de maior vulnerabilidade socioeconômica. Mais da metade dos casos selecionados para participar da pesquisa (105, ou 51,4%) concentra-se em 4 dos 12 distritos de Salvador: Subúrbio Ferroviário, Cabula/Beiru, Itapuã e São Caetano/Valéria – todos abrangendo regiões periféricas da cidade. Contudo, a zika não poupou áreas mais ricas, como o distrito da Barra/Rio Vermelho, onde foram selecionados 23 casos (11,33% do total).
A visitação das 303 famílias está prevista para começar no próximo mês. Inicialmente, será construída a chamada “linha de base”: os pesquisadores se apresentarão às famílias e avaliarão a qualidade da estimulação às crianças já praticada no espaço da casa, além do estado emocional das mães. Será realizada uma primeira avaliação motora, cognitiva e de linguagem da criança e, em seguida, avaliações auditiva, nutricional e de saúde bucal. Após essa avaliação inicial, serão formados grupos de estimulação infantil e de apoio psicológico, que começarão, a partir de setembro, a visitar quinzenalmente as casas das famílias, creches, escolas, CRAS etc., para prestar o atendimento necessário.
Até completarem 42 meses (3 anos e meio) de idade, as crianças passarão por quatro avaliações periódicas, tendo como parâmetro duas escalas de avaliação: a Bayley (método norte-americano de avaliação da idade mental infantil criado pela psicóloga Nancy Bayley), que consiste em uma maleta de instrumentos lúdicos (brinquedos, jogos etc.) que permite avaliar cinco aspectos: cognitivo, uso da linguagem, motor, socio-emocional e adaptativo; e a HOME (Home Observation for Measurement of the Environment Scale, ou escala de observação para avaliação do ambiente doméstico), um questionário socioeconômico usado para avaliar a idade emocional e verbal do cuidador, a presença/ausência de punição e restrição à criança, a organização do ambiente físico e temporal, a disponibilidade de materiais, brinquedos e jogos apropriados, o envolvimento do cuidador com a criança e a oportunidade de variação na estimulação diária.
Fonte: EdgarDigital