“Continuo acreditando que as instituições vão nos dar rumos, que vão tentar, pelo menos, coibir ações predatórias, que prejudicam o cidadão, o contribuinte... e até mesmo o acionista.” A avaliação – lastreada por uma trajetória acadêmica de sucesso, que começou há mais de 30 anos – é da cientista política Celina Maria Souza, pesquisadora do CRH (Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Celina recebeu no final de outubro o Prêmio Anpocs de Excelência Acadêmica Gildo Marçal Brandão, uma honraria conferida pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais a pesquisadores de destaque nacional na área de Ciência Política, pelo conjunto da obra.
Membro permanente do quadro de pesquisadores do CRH, Celina retorna à UFBA em dezembro, após uma temporada de três anos no Rio de Janeiro, onde trabalhou na estruturação programas de pós-graduação em Ciência Política na UERJ e na Unirio. Celina é autora de centenas de publicações acadêmicas, entre livros, capítulos de livros e artigos, onde se destacam suas reflexões sobre federalismo e políticas públicas e suas análises sobre a Constituição de 1988.
Nesta entrevista ao Ufba em Pauta – concedida aos jornalistas Marco Queiroz e Ricardo Sangiovanni, da Assessoria de Comunicação da UFBA, e ao professor Paulo Fábio Dantas Neto, do Departamento de Ciência Política da FFCH, a pesquisadora faz um resumo de sua trajetória profissional e discute brevemente, à luz da Ciência Política, alguns dos principais temas do noticiário político brasileiro.
Leia a entrevista:
Ufba em Pauta: Você começou como professora da Escola de Administração...
Celina Souza: ... em 1986. Comecei lá como bolsista, porque não havia concurso. Nas federais do Brasil inteiro, no regime militar, praticamente não havia concurso, os professores contratados como colaboradores, não havia nenhum tipo de seleção, era por meio de relações pessoais. Sempre quis estar na universidade. Entrei em 1986, por uma iniciativa da professora Tânia Fischer, que conseguiu bolsas para vários professores, e depois se abriu concurso. Eu tinha graduação em Direito, pela Ufba, e o mestrado em Administração Pública pela FGV. Mas, ao longo da minha vida profissional, eu sempre me interessei muito por Ciência Política, como profissão, para fazer carreira acadêmica. Naquela época, não havia concurso na área. Fiz um concurso que abriu em 1989, em Administração, no departamento de Finanças e Políticas Públicas - que foi o que eu sempre trabalhei: finanças, políticas públicas e federalismo.
Paulo Fábio Dantas: Sendo professora de Administração, por que caminho acabou se transformando em referência nacional, da UFBA, em Ciência Política, mesmo sem ser do departamento de Ciência Política?
Celina Souza: Entrei como concursada em Administração em 1989. Em 1991, saí para fazer doutorado e já tinha clareza de que seria em Ciência Política. Então fui para a London School of Economics (Political Science), e voltei com título de Ph.D. em Ciência Política. Logo depois que voltei, fui da banca de mestrado de Paulo Fábio. Já tínhamos tido momentos de aproximação quando Paulo foi constituinte estadual e nós tentamos dar um status político à Região Metropolitana de Salvador - e perdemos. Fomos estreitando essa aproximação. Eu me aposentei da UFBA em 2001 e fui ser professora visitante na USP. Como disse na ANPOCS: a UFBA sempre foi minha casa permanente, para onde eu sempre volto. Então, quando terminei esse vínculo de professora visitante na USP, eu contactei a diretoria do CRH (Centro de Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades da UFBA), lá me inseri, criamos um grupo de pesquisa que se chama Instituições Políticas Nacionais. Depois entrou no grupo Alvino (Prof. Alvino Oliveira Sanches Filho), que tinha sido meu orientando em Administração e saiu para fazer doutorado na USP. O grupo foi crescendo e Paulo e Alvino, hoje, são os líderes.
Paulo Fábio Dantas: Na verdade, ela é a referência fundamental do grupo, para formação de redes, para que o grupo possa se conectar com outros grupos de pesquisa nacionais e de fora também. Nessa trajetória, houve importantes eventos, workshops em torno do tema do federalismo inicialmente, depois publicações de livros.... Enfim: o grupo sente e as atividades se tornam mais intensas quando Celina volta de uma dessas suas passagens por outras universidades.
Celina Souza: Mas agora vou voltar de vez.
Paulo Fábio Dantas: De onde você está vindo agora?
Celina Souza: Saí novamente para ser pesquisadora visitante do IESP (Instituto de Estudos Sociais e Políticos, ligado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro), entre 2012 e 2013. E, nos últimos dois anos, fiquei na Unirio (Universidade federal do Estado do Rio de Janeiro), colaborando com a reformulação de um mestrado que eles já tinham, em Direito e Políticas Públicas. E, neste último ano, nós fizemos toda a formatação de um mestrado em Ciência Política.
Ufba em Pauta: Como é a relação entre os governos e o conhecimento produzido na área de políticas públicas? Qual é o aproveitamento desse conhecimento pelos gestores?
Celina Souza: Existe sim essa relação. A relação entre governo e academia é complexa em qualquer país do mundo, porque os objetivos são diferentes. Governos democráticos são comandados por partidos ou coalizões de partidos, e a academia tem que fazer análises frias, cruas, sobre as políticas que estão em curso, que estiveram ou que virão. É uma relação que não é tensa, mas não é muito usual, e não é só aqui, é em qualquer lugar. Alguns governos se aproximam mais da academia. Na última legislatura, o Congresso se aproximou muito da Universidade nas discussões sobre reforma política. Há momentos em que tem essa interseção. Na época da discussão de uma nova fórmula para o fundo de participação dos Estados, o Congresso também nos chamou, chamou vários cientistas políticos e economistas para discutir propostas. Então, depende do momento. Mas essa é uma relação que nem deve ser permanente.
Ufba em Pauta: Talvez em função dos compromissos que podem distorcer o pensamento do acadêmico...
Celina Souza: ... não sei se distorcer, mas... governo quer voto. Partidos querem votos - essa é a lógica dos partidos. E as ciências em geral querem coisas mais complexas. Hoje, o debate é sobre como discutir desigualdades - esse é o grande tema hoje, todo mundo se envolve nessa discussão. Obviamente, propostas surgem em relação a isso, e acredito que o mundo político vai olhar essas propostas. É sempre um diálogo que depende do momento, depende do tema.... Eu acredito que os economistas têm mais influência no mundo dos partidos. Mas a Ciência Política passou a ter muita influência na relação Executivo-Legislativo, ou mesmo no Congresso. Nos últimos anos, mais até no Congresso que no Governo.
Ufba em Pauta: A questão da captura das agendas públicas por interesses privados aparece quase que como uma constante em nosso cenário político. Daí surge o debate: trata-se mais de um problema de "accountability", de desenho da política pública para que agente político seja levado a prestar contas do que está fazendo, ou mais de uma questão de "mentalidade", de maneira de gerir, de tentar fazer mais políticas "de Estado" e não "de Governo" ou mesmo "de alguém"?
Celina Souza: Claro que tem uma variável "indivíduo" forte. Mas eu acredito que as respostas, no mundo da Ciência Política, estão mais próximas do desenho das instituições, de como elas são formatadas para diminuir a captura, diminuir a corrupção, gerar mais transparência, mais "accountability". Acredito mais nisso: que, desse ponto de vista, é mais seguro a gente confiar nas instituições do que confiar no indivíduo, que não sabemos muito bem quem é. Essa mesma lógica se aplica aos partidos: eles têm regras de construção, formação, regras eleitorais... e o desenho dessas regras facilita ou diminui a accountability, a transparência, quanto o eleitor tem de informação sobre em que e quem ele está votando.
Ufba em Pauta: Você vê no Brasil uma tolerância maior com relação a práticas de corrupção? Existe, por parte da população, uma permissividade maior à corrupção?
Celina Souza: Não acredito nisso. A corrupção não é uma jabuticaba brasileira. Estamos vendo aí, agora, a Volkswagen, a Fifa... alguma coisa está 'fora do ar'. Mas eu continuo acreditando que as instituições vão nos dar rumos, que vão tentar, pelo menos, coibir ações predatórias, que prejudicam o cidadão, o contribuinte... e até mesmo o acionista. Imagina como estão os acionistas da Petrobrás hoje?
Paulo Fábio Dantas: A comunidade dos cientistas políticos vem sendo uma voz - não diria solitária, mas com poucas companhias - na defesa do sistema político que temos enquanto um sistema que permite uma representação plural do eleitorado e que, além disso, produz - ou produzia - de maneira eficaz a capacidade de políticas públicas serem aprovadas, da governabilidade ser alcançada. Os cientistas políticos sempre vêm insistindo nesse ponto, contra opiniões contrárias a essa tese, que grassam nos meios jurídicos, da imprensa, entre intelectuais de um modo geral. Nesse contexto atual, em que se exacerbaram avaliações que colocam o sistema político no centro da discussão, em que medida isso forçará a uma revisão dessa posição, digamos assim, "prudencial", da Ciência Política?
Celina Souza: Essa é uma discussão que renasce. De alguma forma, os cientistas políticos [são] defensores do atual formato do sistema político - particularmente do sistema presidencial e da nossa impossibilidade de que qualquer partido ganhe maioria no congresso, o que permite que haja coalizões para governar. Coalizões que, desde o governo FHC, foram aumentando em número de partidos - isso, obviamente, é um complicador. O que eu sempre me pergunto nessas discussões sobre Reforma Política [gira em torno do] medo de 'jogar o bebê fora com a água do banho' - o medo de se criar (ou copiar, porque é difícil criar algo novo) outras experiências que não se adaptem tão bem ao que nós vimos, até agora, ser o sistema político após a redemocratização. Agora o nosso sistema está complicado, está questionado. Mas acho que entender melhor o que está acontecendo agora nos ajuda mais a sair deste relativo impasse - que, claro, está afetando os três poderes. O Judiciário está legislando, o Legislativo barra agendas que são consideradas importantes, e o Executivo está titubeando em uma série de políticas. O lado do Executivo tem uma dificuldade de encontrar um rumo, ou de voltar a ter a possibilidade que já teve antes de formar maiorias no Congresso - maiorias que, com o tempo, foram se tornando cada vez mais instáveis.
Ufba em Pauta: O problema estaria então nessa formação de maiorias por compromissos de poder, e não compromissos de governabilidade? Ou seria algo mais complexo ainda - como dizem alguns: o problema estaria na Constituição de 88?
Celina Souza: Deus me livre que mexam na Constituição de 88! Acho a Constituição um documento maravilhoso, foi muito além do possível naquele momento. Abriu um caminho, ao elencar na Constituição os direitos sociais, foi uma coisa muito moderna do Brasil - só agora, países que estão revendo suas constituições estão incorporando os direitos sociais no texto constitucional. Tivemos coisas extremamente modernas, interessantes. Um tema que eu trabalho muito hoje é a capacidade burocrática, ou seja, a capacidade que os servidores públicos têm de formular e executar políticas públicas. O Brasil e a América Latina inteira sempre foram acusados de contratar servidores públicos com base no clientelismo, no fisiologismo, na patronagem.... Isso mudou tem muito pouco tempo e foi uma mudança importante, que às vezes a gente não se dá conta. Eu espero que nada aconteça com a Constituição de 88. Que ela viva para sempre!
Paulo Fábio Dantas: Aproveite o embalo para falar um pouco mais do que você está fazendo agora.
Celina Souza: É interessante que a ciência em geral tem "temas que caem na mão" dela, e que ela tem que estudar. Eu sempre fui muito sensível a essa agenda tão premente que vem do que está acontecendo no mundo. Meu primeiro trabalho acadêmico, minha dissertação de mestrado, foi sobre a metropolização: a questão das regiões metropolitanas que, nos anos 70, explodiram da noite para o dia, sem um formato que abrigasse as complexidades desse novo modelo de cidades, que são limítrofes territorialmente, mas que não dialogam nem do ponto de vista do tributo, nem do ponto de vista político. Sempre fui muito sensível a esses temas que vêm. E agora um tema que chega com muita força, tratado pela Ciência Política e pela Sociologia, é o da "capacidade do Estado". Esse sempre foi um tema da Sociologia e pouco da Ciência Política; hoje a Ciência política se aproxima dele: a capacidade que o Estado tem ou precisa ter de entregar políticas públicas. Tem a capacidade financeira, obviamente; a capacidade de aprovação de políticas, que dependem do Congresso. Entre essas capacidades, estou estudando a capacidade burocrática do governo federal. Gostaria muito de estudar a capacidade burocrática dos governos estaduais, esse seria meu grande desafio - no entanto, nós temos dificuldade de acesso à informação em todos os estados.
Ufba em Pauta: Capacidade burocrática como forma de gestão?
Celina Souza: Como a capacidade que têm os servidores públicos para participarem da formulação de políticas e depois de executarem políticas. Você tem várias variáveis para indicar essa capacidade: tipo de formação, faixa salarial, quantos servidores são demitidos ou porque não vão trabalhar, ou por casos de corrupção... Hoje, no Brasil, você tem, como em poucos países, essa informação para a esfera federal tão completa, ao ponto de nos permitir estudá-la. Mas, infelizmente, nem os Estados nem os municípios têm essas informações organizadas, para que você possa montar um banco de dados e não sair falando por impressionismo, só "porque eu fui mal atendido não sei aonde, então a burocracia é ruim...", mas sim por indicadores que a gente possa medir para criar uma visão de capacidade burocrática.
Outro trabalho meu que tem mais ou menos um ano e que foi publicado num periódico inglês ["Breaking the Boundary: Pro-poor Policies and Electoral Outcomes in Brazilian Sub-national Governments", publicado na revista Regional & Federal Studies] é o seguinte: o desenho das políticas públicas influencia a decisão do eleitor? Então eu comparei as políticas de combate à pobreza do Estado da Bahia até 2008 - tem vários programas, mas o maior se chamava Produzir - e as políticas que o governo federal construiu para os mais pobres. E cheguei à conclusão de que, sim, o desenho, como a política é desenhada, influencia o voto do eleitor. A política do Produzir, por exemplo, precisava de uma série de intermediários para que o recurso chegasse na mão do indivíduo. As políticas universais do governo federal praticamente não têm de intermediários: a educação está universalizada, a saúde também, com todos os problemas que têm (claro que ainda existem mecanismos para "entrar por fora", mas é muito mais difícil), o bolsa família, o salário mínimo (que, com o aumento real, a pessoa não precisa "pedir a ninguém"). Fiquei feliz, porque pude comprovar isso empiricamente.
Ufba em Pauta: Quer dizer que o agente da política pública acaba, se não virando um "cabo eleitoral", dando uma relação mais direta, pessoal com o cidadão...
Celina Souza: É. Porque sociedades modernas, como se diz em inglês, são "faceless"[sem rosto]. Não importa se você é homem ou mulher, branco, pardo ou negro: você tem o direito, e não tem que pedir a ninguém para ter acesso a esse direito. A marca das sociedades democráticas maduras é essa: romper com a dependência da mediação, do compadrio. Mas estamos chegando lá.
Paulo Fábio Dantas: O que está pretendendo agora nessa volta à UFBA?
Celina Souza: A UFBA, eu repito, é minha casa permanente. Sempre volto para cá com alegria e entusiasmo. Então, hoje, eu vejo o seguinte: é algo que ainda não foi discutido com as instâncias responsáveis pelos destinos da UFBA, mas eu acho que hoje o departamento de Ciência Política, com os novos concursos, com a entrada de professores que têm formação em Ciência Política, tem todas as condições de criar um mestrado novo em Ciência Política. E, se os interlocutores quiserem, eu estou disposta a apoiar e a fazer o possível para que isso aconteça.
Ufba em Pauta: De primeira ordem, o que é preciso?
Celina Souza: Ah... muita coisa!