“Precisamos chamar a atenção da sociedade para as graves consequências dessa portaria”, alertou o professor Vitor Filgueiras em debate realizado no salão nobre da reitoria, na última segunda-feira, 30. A portaria mencionada é a Nº 1129/2017 do Ministério do Trabalho, que modifica as regras para fiscalização do trabalho análogo ao escravo no país e traz novas regras sobre a publicação da “Lista Suja”. O documento, publicado em 16 de outubro no Diário Oficial da União, motivou o debate, que expôs a relação entre a escravidão pré-abolicão e a contemporânea (veja a íntegra do debate no canal da TV UFBA).
A professora Graça Druck, que tem um vasto currículo em sociologia do trabalho, coordenou a mesa de debate, composta por Nelson Pretto, coordenador do Polêmicas Contemporâneas da FACED/UFBA, e pelos palestrantes João José Reis, de História, e Vitor Filgueiras, de Economia. O reitor João Carlos Salles fez a abertura do debate e reiterou o papel da universidade como “um espaço de ampliação de direitos e reflexões. Um lugar fundamental para nossa luta pela emancipação, pela liberdade”.
Graça explicou o conteúdo da portaria, que, em síntese, dificulta o enfrentamento da escravidão contemporânea. “A portaria modifica a definição de trabalho análogo ao escravo, determinado pela condição de trabalho degradante e de jornada exaustiva de trabalho, ou seja, desqualificou e desconstruiu o que era o conteúdo fundamental que conceituava esse tipo de trabalho até então”. O documento, completa Graça, determina que para caracterização de trabalho semelhante ao escravo é necessária que seja constatada a submissão do trabalhador sob ameaça de punição, com uso de coação.
Outro retrocesso apontado por Graça em relação ao documento assinado pelo ministro do trabalho do governo Temer, Ronaldo Nogueira, é a definição de novas exigências para inclusão de empregadores na chamada “lista suja” – a lista foi publicada no sábado, 28 de outubro, após decisão da Justiça do Trabalho do Distrito Federal que obrigou a União a divulgar a listagem. Caso a portaria entre em vigor, a inclusão do nome do empregador fica condicionada a decisão do ministro do trabalho, colocando assim um filtro político no que antes se restringia a esfera técnica do ministério.
“Essa portaria teve uma repercussão nacional e internacional em razão da gravidade que ela representa”, falou Graça. Ela explicou que, embora a portaria esteja suspensa por definição da ministra Rosa Weber do Superior Tribunal Federal (STF), ela não foi revogada, por isso “essas questões são fundamentais para discutirmos”.
Na opinião do professor Vitor Filgueiras, que já foi auditor fiscal do trabalho entre os anos de 2007 e 2017, a portaria Nº 1129/2017 seria a “cereja do bolo” para a eliminação dos limites à exploração do trabalho em nossa sociedade. “Caso tenha efeito, praticamente vai acabar com o combate ao trabalho análogo ao escravo no Brasil”, afirmou.
“Como o próprio nome diz, esse tipo de trabalho possui condições semelhantes ou até piores ao qual o escravo era submetido”, explicou. Além da herança da escravidão, descreve Filgueiras, há um padrão de gestão econômica depredatório, cujo interesse é dilapidar a força de trabalho, por isso, “o trabalho escravo não se erradica no capitalismo. É possível limitá-lo, mas assim que as condições políticas ressurgem, elas voltam a todo vapor”.
Vitor falou também de outras tentativas anteriores à portaria que tentam alterar o atual conceito de trabalho análogo ao escravo. “Essa disputa está sendo colocada desde 2003”, afirmou. Para ele, o capitalismo não precisa de chicote para exploração. “É preciso que venha alguém de fora e coloque limite àquele processo”. Ele mostrou fotos de trabalhadores em situação degradante. “É isso que o atual governo está dizendo que não é mais crime”, apontou.
O professor João José Reis deu uma aula de história sobre escravidão pré-abolição. Ele, que estuda história social e da escravidão e do tráfico, afirmou que o Brasil foi o país da América que mais importou escravos. A Bahia foi o segundo maior porto das Américas, de onde se organizavam as expedições negreiras, perdendo apenas para o Rio de Janeiro. Ele abordou também as influências estruturais da escravidão em nossa sociedade, com a naturalização do fenômeno. “A escravidão estava espalhada por todo tecido social. Escravos podiam ser donos de escravos, por exemplo”, afirmou.
“A alforria era algo que o escravo podia almejar. Era dada principalmente por pequenos e médios proprietários”, por isso, esclarece, em meados do século XIX, a população livre era maior que a população de escravos. “A alforria, contudo, era algo que exigia obediência, lealdade e bons serviços”, observou. No Brasil, completa Reis, diferentemente dos Estados Unidos cujo escravo alforriado precisava abandonar o Estado, havia uma certa absorção dos escravos libertos.
“Estamos numa situação que o governo quer abolir a lei áurea. A portaria teve resistência inclusive dentro do aparato do Estado. Ela é resultado da fragilidade jurídica num mundo que, estima-se, possui de 30 a 56 milhões de pessoas escravizadas”, afirmou Reis ao conduzir o debate para o momento político nacional. Em sua opinião, falta a dimensão da resistência que atua no cotidiano nas pesquisas atuais sobre escravidão contemporânea . “Procurar conhecer as leis para garantir seus direitos é um forma de resistência”, assegurou.
Segundo dados do Ministério do Trabalho, nos últimos 20 anos quase 50 mil trabalhadores foram resgatados da escravidão contemporânea. A expectativa é que ainda existam 160 mil pessoas vivendo nessas condições no Brasil, de acordo com a Walk Free Fundantion.
O debate foi organizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH/UFBA), Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFBA), Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA), com o apoio da Reitoria.
Fonte: EdgarDigital