“Quando entrei na UFBA, pude ter acesso a diferentes possibilidades, mentes e universos, pude entender minha história em diferentes perspectivas. Pude aprender sobre a grande desigualdade racial que existe no meu país e entender a minha responsabilidade, enquanto mulher preta na universidade, de construir um país menos racista”
Esse depoimento forte e tocante, atestado poderoso de consciência política, é de Aniele Berenguer, 22 anos, estudante do quinto semestre do curso de Psicologia da UFBA, selecionada entre alguns milhares de colegas para representar o Brasil em dois importantes eventos internacionais: o Brazil Conference at Harvard & MIT, em abril, nos Estados Unidos, e o Girls 20, em maio, no Japão.
O G-20, abreviatura de Grupo dos 20, reúne os ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias nacionais do mundo e da União Europeia (UE). E Aniele é uma das 20 jovens desses países e mais a UE escolhidas para participar do G(irls)20 Summit, um importante evento de liderança para mulheres lançado em 2009 pela Iniciativa Global Clinton, que desta vez será realizado de 24 a 31 de maio, em Tóqui, Japão, onde se debaterá questões de gênero e as condições de vida das mulheres no mundo atual (https://girls20.org/programs/global-summits/).
Para participar do processo seletivo, as candidatas compartilharam suas trajetórias pessoais, vivências em projetos sociais e expectativas de transformação da realidade de suas comunidades. Aniele conta que se inscreveu sem muita expectativa, em razão da grande concorrência, e ficou completamente surpresa com o resultado final. O evento mundial oferece bolsa para cobrir todos os custos das participantes selecionadas.
As relações raciais, de gênero e saúde e as áreas de psicologia social e comunitária são temas de interesse de suas pesquisas na iniciação científica na universidade. Quando criança, Aniele conta, era bolsista e uma das poucas estudantes negras em uma escola particular, e lá percebeu o racismo, percepção e experiência que iriam se repetir também no ensino médio.
“Sou filha de uma professora de ensino Infantil e neta de uma lavadeira. Minha família sempre priorizou minha educação. Sou negra, nasci numa família de negros, que também sempre foram presentes no meu bairro, a Boca do Rio, em Salvador, mas, ao entrar numa escola particular, isso mudou. Eu era uma das únicas negras na escola, usava trancinhas no cabelo e pegava ônibus para ir e voltar do colégio. A partir daí passei por experiências de racismo, quanto mais ocupava espaços antes nunca acessados por ninguém da minha família”, relata.
Tudo isso fez com que a estudante se interessasse por entender a questão racial no país. Na universidade, pode se aprofundar no debate sobre esse tema que marca a sociedade brasileira, inclusive integrando-se ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em raça, gênero e saúde (NEGRAS), coordenado pela professora Liliane Bittencourt, que promove uma série de ações para dar visibilidade às demandas e conhecimentos relativos à população negra. Com o grupo, Aniele participa de ações desenvolvidas para debater temas atuais, como representatividade, racismo e violência de gênero, e apresentar referências da cultura negra aos estudantes.
“Entrei no Negras no meu primeiro semestre e foi um ambiente de grande crescimento e transformação social. Juntas, já trouxemos reflexões sobre genocídio da população negra, identidade, racismo estrutural, entre outras questões, através de cine debates dentro da universidade. Construímos colóquios que trouxeram o tema da saúde da população negra como pauta central de discussões e fizemos intervenções em escolas públicas para trazer o debate de gênero e das relações raciais”, destaca Aniele.
Ela também participa de atividades desenvolvidas na Comunidade do Pilar, no Comércio, através de uma ACCS – Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade, que atua para promoção de uma psicologia popular que seja mais acessível e capaz de dar suporte às comunidades mais desassistidas pelo estado, e na perspectiva de mediação de relações e articulação com as redes de serviço público, por meio da arte, criação e cuidado em saúde. A iniciativa faz parte do projeto de extensão Comucidade, idealizado pela também estudante de psicologia Deane de Jesus e coordenado pela mesma, junto com a estudante Lorena Portela, o psicólogo Yuri Batalha e a professora Angelina Pandita, da Faculdade de Educação.
No G(irls)20, as jovens receberão treinamento em liderança, empreendedorismo social e mentoria de outras líderes mulheres do setor público e de negócios. A expectativa é de que retornem a seus países com mais confiança, novas habilidades e uma rede global (network) que lhes facilitará tornarem-se agentes de mudança em suas comunidades. Na parte final das atividades será apresentado um conjunto de recomendações sobre a perspectiva da mulher negra nos países do G-20.
“O objetivo do programa é também contribuir para que cada representante elabore um projeto em sua própria comunidade. Eu penso em um projeto para as escolas públicas que traga referências negras e discussões sobre a realidade de racismo e machismo do nosso país. Quero que os jovens saibam que existem e existiram heróis e heroínas negras com grandes histórias, pessoas reais que estão fazendo muito pelo nosso povo e devemos conhecer e nos inspirar. Não tive isso quando estava no colégio e sei o quão é importante ter representatividade”, afirma ela.
Em Harvard e no MIT
Selecionada também para a Brazil Conference at Harvard & MIT, conferência realizada pela comunidade brasileira de estudantes na Universidade Harvard e no Massachusetts Institute of Technology, em Boston, Aniele participará ali dos debates com lideranças do país sobre algumas das principais questões que o afligem. Ela integra um grupo de 10 estudantes do país, dois de cada região, selecionados para participar do evento, de 5 a 7 de abril, nos Estados Unidos.
Em seu retorno, a estudante deverá organizar conferência no Brasil para replicar os conhecimentos adquiridos com a sua participação no evento. Aniele planeje realizar essa atividade na UFBA para compartilhar a sua experiência com os colegas. “Ao retornar, cada embaixador tem a responsabilidade de replicar a conferência em menor escala em sua comunidade, a partir dos debates que foram observados na Brazil Conference. O tema central fica a critério de cada embaixador. Quero fazer algo na UFBA que incentive a atuação dos estudantes fora da Universidade. Quero que a gente possa fazer mais que discutir e conversar sobre os problemas”, planeja.
Na sexta-feira, 22, o reitor em exercício Paulo Miguez parabenizou Aniele por suas conquistas. “Pessoas como você engrandecem a nossa instituição. Para nós é um grande orgulho a sua conquista e isso certamente sinaliza que você terá um futuro brilhante”, disse ele ao recebê-la na reitoria. A professora Elizabeth Ramos, assessora para Assuntos Internacionais da UFBA, elogiou a iniciativa da estudante e lhe deu orientações sobre a experiência de viajar para uma universidade do exterior.
“Aniele é a expressão de que a universidade vale a pena”, disse Miguez, chamando a atenção para o fato de a universidade ser também o lugar para o enfrentamento de problemas sociais como o machismo e o racismo. “Aqui somos preparados para enfrentar esses problemas. É uma alegria saber que, apesar de todas as dificuldades, conseguimos seguir em frente”.
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