Reitoria promove debate sobre cotas na pós-graduação
A UFBA realizou um debate público na tarde de quinta-feira, 3 de novembro, a primeira de uma série de ações que estão sendo promovidas pela Comissão constituída pela Reitoria para propor aos conselhos superiores e à administração central da universidade a política de ações afirmativas para a pós-graduação – algo inédito na história da instituição ao longo de seus 70 anos.
No evento, que contou com a presença de membros da comunidade acadêmica e representantes de diversos movimentos sociais, o coordenador de ensino de pós-graduação da UFBA, Ronaldo Lopes Oliveira, entregou ao reitor João Carlos Salles a minuta de uma resolução que será submetida ao Conselho Acadêmico de Ensino, estabelecendo uma política de cotas para o acesso de pessoas pretas e pardas, indígenas, quilombolas, pessoas trans e pessoas com deficiência à pós-graduação na UFBA.
“Num momento difícil, em que se tenta implementar políticas que representam claro retrocesso para a Universidade, é preciso escovar a realidade a contrapelo. Estamos sendo desafiados, e a UFBA não pode estar atrasada na confecção de uma política de ações afirmativas para a pós-graduação”, disse o reitor, antes de passar a palavra aos quatro respeitados especialistas no assunto convidados para a mesa: os professores Kabengele Munanga, da Universidade de São Paulo (USP), José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), Maria Rosário Gonçalves de Carvalho, dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro) da UFBA, e Samuel Vida, da Faculdade de Direito da UFBA, representando também o Coletivo Luiza Bairros.
A minuta sugere alterações nos procedimentos de elaboração de editais de seleção, de modo a criar condições especiais para o acesso de pessoas pretas e pardas, indígenas, quilombolas, pessoas trans e pessoas com deficiência. “A Reitoria está oferecendo todo o suporte jurídico aos programas que implementarem ações afirmativas na pós-graduação em suas seleções”, disse o coordenador de ensino de pós. O assunto deverá ser debatido em breve pelos conselhos superiores da UFBA.
O evento encheu o auditório da Faculdade de Arquitetura e faz parte de uma série de eventos que debaterão a política de ações afirmativas para além da reserva de vagas.
Acesso e permanência
A professora Maria Rosário de Carvalho abordou a “invisibilidade a que são submetidos estudantes indígenas” na Universidade, tema da tese de doutorado em Antropologia Social de sua orientanda Ana Cláudia Gomes de Souza, da qual trouxe dados e reflexões. Para Rosário, as políticas de ações afirmativas não devem se restringir ao acesso, mas pensar também na permanência dos estudantes – tanto na dimensão material (condições de moradia, alimentação e transporte) quanto nas dimensões cultural e epistemológica (onde ainda acontece um agressivo processo de negação ou subordina saberes tradicionais a uma racionalidade de matriz euro-ocidental).
O professor Samuel Vida recuperou a longa história de luta independente travada pelo movimento negro no Brasil, saudando a iniciativa da Reitoria de acolher e impulsionar o debate sobre ações afirmativas na pós. Crítico do que chamou de “diversidade monocultural” – ou seja, da inclusão de “corpos negros” numa dinâmica comportamental que essencialmente “branca” -, Vida defende a necessidade de acelerar a implementação de uma política de ações afirmativas na pós-graduação, tendo em vista que, na atual conjuntura política, “se todos correm risco de perder, somos nós [negros] os que podemos perder mais”.
Coordenador do INCT Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, José Jorge de Carvalho, do departamento de antropologia da UnB (Universidade de Brasília), falou da necessidade de se implementar o quanto antes políticas de ações afirmativas na pós-graduação. Para o professor, é preciso traçar uma meta e estabelecer os percentuais de inclusão que se pretende alcançar, para daí decidir os percentuais das cotas. “Quanto mais passa o tempo [sem cotas], mais cresce o passivo da Universidade”, alertou. O lema, segundo Carvalho, deve ser “nenhum negro a menos, nenhum indígena a menos. Não podemos perder ninguém, porque o passivo é muito grande”.
A última manifestação da mesa foi a do professor brasileiro-congolês Kabengele Munanga, que deu um depoimento pessoal contando sua experiência como “primeiro professor negro da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP”, a partir de 1980, e único no departamento de Antropologia até 2012, quando se aposentou. Segundo Munanga, mesmo grupos ligados à reflexão acadêmica sobre a questão racial no Brasil, no âmbito das ciências sociais, não abriram, na USP dos anos 70 e 80, o debate sobre a ausência de negros na própria universidade, tanto na docência quanto entre o alunado de pós-graduação. “Nunca tive mais de dez alunos negros por semestre letivo, somadas duas turmas”, disse Munanga. “Quando entrei na pós-graduação na USP, em 1975, éramos apenas dez negros, todos africanos. Não havia negro ‘da terra’ [brasileiro] por causa da falta de formação embutida no racismo à brasileira.” E questionou: “Por que só agora? Mas, melhor tarde, do que nunca.”