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Os riscos da importação de doutrinas penais criadas em outras realidades

Seminário foi realizado na quarta, 14/06

“Desafios e perspectivas de uma ciência penal conjunta” foi o tema do I Seminário Internacional do Centro de Ciências Criminais Professor Raul Chaves (CCRIM), que  reuniu estudantes, professores e profissionais do direito, quarta-feira,14, no salão nobre da Reitoria. A lista dos 10 conferencistas convidados incluía o professor Eugenio Raul Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos e professor emérito da Universidade de Buenos Aires, Argentina, considerado atualmente o mais importante estudioso das ciências criminais nas Américas. Sua fala marcou o encerramento do evento.

O vice-reitor Paulo Miguez abriu o seminário e destacou o significado da iniciativa, a autonomia e proatividade dos estudantes da Faculdade de Direito, especialmente do CCRIM ao organizar um evento cujo tema “é fundamental discutir”. Em seguida, o presidente e fundador do centro, Ílison Santos, abordou um pouco da história do CCRIM, seus objetivos e o papel do estudante dentro da universidade. O vice-presidente e também fundador do centro, Jhonatas Melo, prestou uma homenagem póstuma ao professor Raul Chaves, considerado o maior criminologista da Faculdade de Direito na sua época, representado no evento por sua família.

Com toda a densidade das várias falas e debates ao longo do dia, a conferência “Direito Penal Humano e Poder no século XXI”, de Eugênio Zaffaroni, foi a mais ansiosamente esperada do seminário. Ele tratou da tarefa dos penalistas no século XXI, expôs sua visão sobre o atual momento da sociedade, extremamente complicado, abordou os fundamentos do poder punitivo, passou pela história da dogmática penal e pela importação de doutrinas penais que nada têm a ver com a realidade dos países latino-americanos e, por fim, questionou qual seria efetivamente o papel da pena.

 

“A natureza da doutrina penal é política, os penalistas fazem projetos políticos, dão decisões de poder. As sentenças são atos polítcos e o juiz que as aplica tem que ter consciência de seus efeitos sociais”, disse para deixar logo claro que não crê mostrar num direito neutro, apolítico, apartidário não ideológico.

“Temos que controlar o poder punitivo racionalmente, porque o poder punitivo e a pena não são racionais. A que serve a pena? A pena não tem justificação. A pena é um fato político, um fato de poder punitivo. Não sei qual é a sua real função. O poder punitivo é uma idolatria, uma falsa religião. Suspeito que uma das suas funções é canalizar vingança. Nós temos que preservar o espaço da dinâmica social, e essa é uma função importantíssima.”, disse.

Zaffaroni abordou a origem da dogmática penal existente hoje na América Latina. “Nossa dogmática foi criada na Alemanha, num período com interesses políticos e ideológicos próprios daquela época e daquela realidade. Acabamos importando a doutrina penal criada nesse contexto e aplicando no nosso. Isso é incoerente, artificial, não representa as nossas necessidades. Não podemos continuar importando doutrinas penais que foram criadas para outras realidades. Devemos criar nossas próprias doutrinas com dados da nossa própria realidade.”

Na véspera, em visita em visita ao reitor João Carlos Salles, Zaffaroni já comentara um pouco como vê o atual momento em nossas sociedade. “Estamos vivendo um momento em que a política perdeu espaço para o poder das corporações transnacionais. A tentativa totalitária comunista fracassou, mas vivemos num totalitarismo corporativo. As corporações representam uma nova face do colonialismo, o colonialismo financeiro. Elas se valem da fragilidade e vulnerabilidade de nossos estados, contanto com em parte com o judiciário, em parte com  a mídia. Esse é um projeto de sociedade que não fecha sem repressão e violência.”, disse Zaffaroni

Sobre os direitos humanos, observou que “todo o continente está num processo de regressão. Na Argentina, México e Brasil, estamos regredindo especialmente nos direitos humanos sociais, culturais, econômicos. Nossas universidades estão sendo agredidas financeiramente através dos orçamentos, a incorporação dos jovens está sendo dificultada. É um processo em que os monopólios estão destruindo, causando desemprego, e consequentemente, gerando violência.”

Eugenio Zaffaroni comentou também sobre o panorama do direito penal no Brasil. “No Brasil, estão pegando o sistema penal como uma estrutura central jurídica. O Brasil tem quase 2 milhões de pessoas envolvidas em processo penal. Isso equivale a metade da população do Uruguai e a quarta parte da população da Argentina. Cada uma dessas pessoas tem família, que estão se familiarizando com essa área penal, banalizando-a, normalizando-a. Esses dados mostram que alguma coisa não está indo bem.”

Complementou ainda, que modificar esse cenário não é uma tarefa fácil. “ É muito mais complicado, do que se imagina. Em toda América Latina, isso está ligado ao monopólio de meios massivos de comunicação social. Enquanto elas estiverem mandando em nossos países, esse cenário não vai se resolver. É um totalitarismo corporativo. Esse cenário não fecha sem violência.”

Ainda sobre o papel do penalista no meio de todo esse contexto, Zaffaroni ressaltou a importância da formação sociocultural de um juiz e disse que “um juiz deveria ser formado em profundos conhecimentos de sociologia, história, arte, filosofia, a formação técnica  penal é detalhe. É importante que  sujeito tenha a cabeça aberta para a realidade. Toda sentença é um ato político e quem pratica deve saber que ele tem um impacto social grande”

Além do convidado especial, o I Seminário Internacional do CCRIM reuniu outros conferencistas que trataram de assuntos de grande relevância para a área também.

Ana Elisa Bechara, professora do Departamento de direito penal, medicina forense e criminologia e livre docente pela Faculdade de Direito da USP, falou na conferência “Os desafios do Direito Penal contemporâneo: os limites do normativismo” sobre o problema de se interpretar as normas penais sem uma reflexão crítica, sem uma valoração. “É preciso abandonar esse imaginário do Direito como uma ciência objetiva e neutra. Não basta a simples comparação entre comportamento e norma, mas sim uma relação entre desses dois critérios através da valoração”, disse ela.

“O Direito Penal não é e nem deve ser um instrumento de pedagogia social, ele não é o primeiro nem o melhor meio de controle social. O Direito Penal é o último instrumento para cumprir esse objetivo. Atualmente ele é usado como instrumento autoritário do poder do Estado, quando na verdade deveria estar sendo usado para permitir o desenvolvimento das liberdades individuais e limitar o poder de punir do estado”, finalizou ela.

Ainda na parte da manhã, o professor da Faculdade de Direito, Fábio Roque, falou sobre “Reflexos jurídico-penais da revolução neurocientífica” e a professora Alessandra Rapacci, abordou o tema  “ O sistema penal e o princípio da individualização da pena”.

Já na parte da tarde, Gamil Foppel, também professor da Faculdade de Direito, abriu a conferência “ O papel da dogmática penal”, falando sobre o sistema processual penal brasileiro, o ‘estado de exceção no qual o país vive’, e recentes descumprimentos de leis constitucionais . “ O processo penal tem perdido sua importância, seus critérios legais. A dogmática deve ser vista como uma ferramenta de garantias dos direitos” , disse ele.

Logo em seguida, a professora Daniela Portugal, arrancou aplausos da plateia com a conferência “Por uma nova leitura do Direito Penal à luz da criminologia feminista”.  “O Direito Penal tem sido um agente de manutenção da invisibilização das mais variadas forma de violência de gênero”, disse ela que também trouxe dados estatísticos da violência contra a mulher no Brasil. Sebastian Mello, também professor da Faculdade de Direito, foi o terceiro conferencista da tarde. Na sua conferência “Culpabilidade e Neurociência”, ele falou sobre as implicações da neurociência no Direito penal e problematizou as noções de liberdade e livre arbítrio.

O evento seguiu com as conferências  “O paradigma legislativo  da irracionalidade jurídico-penal no combate à corrupção” da  professora Juliana Damasceno,  e “A tendência da consensualidade na solução de conflitos”, da professora Selma Santana. Nessa última, a professora Selma abordou países que têm adotado esse meio de solução de conflitos penais e refletiu sobre a postura do Brasil nesse caminho. “Nossas faculdades nos prepararam para o litígio, para a beligerância, precisamos mudar esse paradigma, precisamos realizar também a mediação, a conciliação.”, finalizou a professora.

Fonte: Edgardigital